sábado, 3 de setembro de 2011

Ah, os dias cinza...

"[...] Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo. Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce..." (Caio Fernando Abreu - In: Os dragões não conhecem o paraíso)


Acordei, abri a janela do quarto: está um sol lindo. Um dia lindo. Tudo lindo. Tudo lindo-lindo e eu preciso escrever, mas não tem aqui angústia nenhuma. Fotofobia. Não ter angústias me angustia, pensei. Não estou acostumada com coisas dando muito certo, parece a calmaria que (imagino eu) deve trazer um tornado minutos antes de devastar uma cidade inteira. Precisava escrever, precisava. Há dias precisava. Mas não tenho tido muito tempo para fazer um corte aqui e outro ali, esperar sangrar, cicatrizar e etc. A vida anda escapando e os únicos esforços são para economia de tempo - e de energia física e mental, de dinheiro, de sono, de coragem, de lucidez.

Às vezes me incomodam esses dias lindos de sol quente. Esse calor me abraçando forte, pessoas por todos os lados, falando e cantando e dançando e bebendo e sorrindo e tomando sorvetes de flocos. Por isso me lembro de dias cinza. Resgato da memória minha parte monocromática. O céu cinza leva a gente de encontro a tudo aquilo que queremos deixar debaixo dos panos, inexoravelmente. Já quis tapar dias cinza com pequenos sóis até perceber que era inútil. Alimentei um monstrinho ou outro debaixo da cama, em especial, sob dias cinza. O cinza aumenta a fome – e a fome não passa.
Então olho o céu cinza da minha foto de um dia cinza de uma alma acinzentada, coração comprimido e penso: olha, cara, é verdade, "os dragões não conhecem o paraíso" - ou não sabem lidar muito bem com ele. Tem tanta paz aqui que não me decidi se guardo em caixinhas, para que não falte mais tarde quando e se o tornado vier, ou se vivo tudo até enlouquecer de felicidade.


Graças a Deus (e transcendendo aqui a força de expressão), tenho aprendido com pessoas tão lindas quanto um céu azulzinho a ser feliz. Ser feliz em doses homeopáticas, devagarzinho para não sair correndo, porque muita felicidade me assusta. Apesar do medo, ser feliz é bom, dá uma vida na gente, ilumina. Quase não sinto saudades dos meus dias cinza. Daqueles meus dias de ensimesmamento, de cápsula autista, de me trancar em mim e não deixar ninguém se aproximar. As pessoas azul-céu-clarinho chegam com cuidado, batem na porta - eu abro sem me dar conta de que elas não deixam o cinza entrar, e quando ele consegue chegar perto, logo se dissipa. A luz não aceita o cinza.
Por vezes pensei que a felicidade estava extinta. Ser feliz não não não, nunca mais, muito obrigada. Agora - e só agora - vejo tudo mais claro, menos cinza: mentira, a felicidade se ausentou apenas para voltar mais azul- clarinho...
Paro e olho fotos que tirei da vida, ao longo de meses e anos, capto meus dias cinza. Olho-os firme, nos olhos do cinza. Sinto-os em mim mais elaborados – talvez até menos cinza do que eram, como se os monstrinhos tivessem perdido os dentes. Na época o cinza era quase negro, negro buraco-negro. Mas agora é cinza, apenas. E não ofusca meu céu azulzinho. Cresci tanto, amadureci e hoje sou fruta mais apreciável.
Acordei, abri a janela do quarto: bom dia, céu-azul-clarinho. Qual a previsão de tornados para hoje?

terça-feira, 7 de junho de 2011

O eu e o último

De repente me bateu uma vontade de saber de você. Uma saudade grande que escrevo fingindo que você vai ler só pra não ir até o seu portão no meio dessa chuva, interfonar em todos os apartamentos do seu prédio até descobrir qual é o número em que você mora e então não conseguir dizer uma só palavra e boba e parada e molhada e morrendo de frio assistir as minhas falas decoradas virando fumaça assim que ouvisse a tua voz.
Confesso que não sei porque fui ouvir aquelas músicas. Aquelas lá, que ouvíamos tanto e que, agora, soam diferentes. Acho que fui ouvir pra te procurar. Faz frio lá fora (ou aqui dentro?). Não sei. E minto. Mas tudo bem, eu não minto pra ninguém – exceto pra mim – mas eu não me acredito. Pra dizer a verdade, acho que sou eu que estou diferente. Talvez mais triste, elaborando lutos enquanto me debato em paredes de memórias pra não te lembrar, numa negação que me consome todas as energias e então exausta eu tropeço em canções que me levam direto pra você. E te lembro, todo dia, todo dia. Então descanso.
Olha que se eu te procurasse e você me atendesse eu diria que queria ter você. Perto, longe, tanto faz. Teria construído um mundinho que é sempre hora de ficar. Fica, sim? Só mais um minutinho, no meu mundinho que poderia ser nosso e não foi, só mais um dia, uma semaninha, um mês... uma vida? E não vamos perder tempo falando das nossas diferenças, certo? Não vamos falar de como você é branco e eu sou preto, de como eu vou a passos largos pela esquerda nos meus caminhos tortos enquanto você vai pela direita e protege com unhas e dentes a sua retidão, de como você é a lei e eu vou fazer uma rebelião a qualquer momento, de como você vai viver cem anos ou mais e eu quiçá a metade disso, não vamos não, porque é perder tempo. É perder tanto tempo, meu bem e o tempo nem existe.
Eu queria gastar meus últimos minutos com coisas mais brandas. Que não queimassem o coração da gente assim, até carbonizar. Minutos finais pra desenterrar uma coragem e te dizer qualquer coisa como escuta aqui, menino, como é bom ter você e etc. Como você é importante sabe como é meu amor. Como eu penso e repenso em você até dormir, penso tanto que nos sonhos você chega a aparecer. Me engasgaria até conseguir dizer, devagarinho: Menino-como-eu-quero-cuidar-de-você.
Mas eu não disse. Eu nunca disse. Porque estou sempre perdida demais na minha confusão, num furacão de más resoluções arrastadas por meses e anos e dores que eu não poderia jamais te afogar nesse caos. E então me afogo sozinha. Vivo me machucando pela vida, joelhos e queixo ralados. Vez em sempre machuco os outros também, sou desastrada e inábil em segurar culpas. Pra não ferir, eu fujo. Juro, é inútil, mas eu continuo correndo. Correndo, correndo. Eu teria tantas coisas pra te dizer, pensando bem, muitas mesmo. Mas eu não poderia dizer... e era porque eu tinha medo. Saco. Um puta medo. Um medo só meu e bem escondido. Às vezes ele aparecia sim, é verdade. Você via, eu te abraçava, os olhos escorriam tal qual torneiras abertas, era medo. Não medo de morrer, não não, antes fosse: era medo de viver. A vida é um risco e está sempre por um fio. Eu tinha medo de perder. Medo de me perder. Medo de perder você com o que quer que eu dissesse. Que numa palavra ou outra esse fio transparente e frágil que nós nos equilibrávamos com um pé só arrebentasse. E eu nada disse - e te perdi.
Acho que no fundo desse copo cheio de cachaça barata que eu chamo de coração, eu queria que você me botasse sentada no seu colo e dissesse cheio de razão um grande NÃO, instituísse de uma vez por todas a lei que eu preciso, você não vai fugir, e ponto, rompesse com as minhas repetições, a mania de estragar tudo, a minha compulsão de tacar vasos no chão pra depois contar os cacos. E agora um abraço e ficamos aqui, para sempre. Vivendo num mundinho sem partidas, sem fugas, sem medos. Aqui pra sempre. Pra sempríssimo.
Mas houve a fuga.
E houve o medo.
E do peso da diferença, criou-se o hiato da incompreensão.
O rádio desligou, e agora? Agora faz frio aqui dentro.
Eu gosto tanto-tanto de você, que te deixei partir.

domingo, 29 de maio de 2011

desconexão


Dorme menina, o sono também salva, ou adia. (CFA)



A insônia e o choro.

A falta de ar e a tosse.
Coração disparado.
O estômago revira,
a cabeça lateja,
grito abafado pelo travesseiro.
Ninguém escuta.

...

Aspirina e outras drogas pra dor existencial são placebo, menina. A ferida é sempre mais embaixo. É sempre ali, mais no fundinho da constituição do ser, nas vísceras, no ponto em que se relar, sangra – e sangra até a última gota. Naquela noite teve febre. Acordou algumas vezes de pesadelos confusos com abismos e fugas, que enquanto fugia, caía, que se levantava e corria, caía uma, duas, três vezes e depois perdia as contas e acordava com gosto de terra na boca, sentia entre os dentes os graoszinhos dissolvendo na língua. Suava colada ao cobertor molhado, tiritando, dentes batendo, o frio cortando, cabelos molhados, face encharcada. De mau a pior: tossia. Com força, o peito chiava, comprimido. Garganta machucada pela tosse perigava sangrar, da essência já vertia sangue. E as vísceras extirpadas. Cara inchada, olho pregado. Abriu os olhos, teto rodava. Nada dá jeito. Nem ninguém, nem ninguém. Levantou a cabeça do travesseiro ensopado, fechou os olhos e sentiu o mundo girar. Andou cambaleando, tropeçando nas pernas. Era porre sim, mas pior que porre de álcool, coquetel de psicotrópicos ou sei lá, é porre de tristeza. Daqueles que você acorda tão-tão fodido que só deseja que o fim do mundo já tenha começado quando você abrir a janela pra fumar aquele último cigarro amassado que sobrou perdido no fundo da bolsa. Janela fechada. Porta trancada. E chave por dentro. Com as unhas vermelhas descascadas e roídas até o sabugo, se garrou nas paredes e trançando as pernas foi até o banheiro. A cara refletida no espelho doía. Era triste e doía. Era jovem, perdida, decepcionante e (se) doía. E como proceder diferente? Como não ser daqueles bichos que ninguém adestra? Doía e não era a primeira vez. (Me domestiquem! Me domestiquem! Gritava. Gritava tanto.) Não seria também a última, sabia – e gritava mais. Pasta na escova, escova na boca, tosse de novo e de novo, tossindo abaixa a cabeça contra a pia enquanto segura a torneira e deixa a escova cair, perde o ar, tosse e é o choro que volta, escova na garganta e o enjôo. Chão frio no rosto.
Bom dia. Mas muito bom dia para você.  

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Tudo bem

Lembra daquela mania que você tinha de só saber desabafar fazendo teatro? Daqueles de jogar as coisas todas no chão e gritar não quero mais, não quero mais, nunca, nunca. Entre cartas, pensamentos, obsessões, afetos, desconstruções, cortes e arranhões, fantasias, cansaço, estupidez, queimaduras, lágrimas – tudo no chão, quebrado em mil pedacinhos de coração partido.
E depois? Depois deitar na cama, chorar três dias, morrer várias e várias vezes - exaustivamente. E daí então levantar, se lamentar da própria decadência, reclamar da própria cara como auto-punição por ser tão tola-excessiva-e-infantil, correr, cair de joelhos e dar de rosto no chão, juntando os cacos todos... pra depois, tudo de novo, tudo de novo. Eu não sei se você sofre, menina, mas eu sei que você é atriz. Das boas.
Então com aquele ar embaraçado de quem é pego em flagrante no pecado mais pecaminoso, você se defende, faz manha e cara de injustiçada. Toda determinada me diz: - porque à tristeza não é necessário nomear, baby. Sabe como é. Ela chega sem avisar, não bate à porta, entra esbarrando nos teus suvenirs ganhados que estavam em cima da mesa, arregaça a porta da tua geladeira, bebe as tuas cervejas, põe o pé no teu sofá e muda o canal da tua TV enquanto você assistia ao último episódio da tua novela preferida e a você resta só o papel do bom anfitrião.
Tenho me sentido particularmente triste no momento em que acordo. Não sei, quando a gente dorme não há chance de esquiva, e daí olha, Morfeu me põe de cara com todos os pesadelos que acordada eu faço de conta que nem estão ali. Ou melhor, que nunca estiveram. Ando em total negação de história pessoal. Mas olha, eu considero essa do Morfeu extremamente cruel, me obrigar a lutar contra dois mil anos de mágoas e desesperos assim, tão sem possibilidades de defesa. Por sorte, ultimamente meus sonhos tem sido acometidos de um recalcamento quase que imediato. Lembro por dois segundos e num terceiro momento... pufff! Esvaem-se os fantasmas.
Mas... (e ela sempre tinha um mas, contudo, no entanto, entretanto, porém, todavia – qualquer conjunção coordenativa adversativa - dentro da manga), o que é que a gente faz com a angústia do recalcado, cara? - Sei lá, menina. Sublima. Faz uma poesia música escultura em argila artesanato receita de bolo obra-de-arte. Faz arte! Uma loucura, besteira, uma bobagem bem grande e tanto faz, tanto faz. Vai levando, de angústia em angústia constroem-se monumentos faraônicos, meu amor e você, você bem merecia uma pirâmide só pra essa sua alma boba.
E então você me abraça sorrindo como quem acaba de ganhar a tal pirâmide, como quem toca a tristeza à vassouradas pra fora de casa. E eu sorrio de volta, já sabendo que quando eu virar as costas, lá vai você encenar o ato II: menina abraça a sua tristeza de novo - mas eu sorrio de volta mesmo assim, e abraço com todo o carinho de quem te solucionou das suas crises existenciais-afetivas, mesmo sabendo que em breve estarei eu pensando no que você merece agora, se é o Grand Canyon, torre Eiffel ou os jardins suspensos da Babilônia, e daí você vai me sorrir e tudo de novo, tudo de novo e tudo bem. Pelo seu sorriso lindo, bobo e instantâneo de propaganda de pasta de dente e pela minha onipotência-barra-simulacro e possibilidade de te dar o mundo inteiro embrulhado pra presente – tudo bem.  

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Alô, alô, Realengo, aquele abraço!

(vamos falar do que interessa...)


Um amigo chegou a mim outro dia desses, interessado em saber minha opinião (obviamente, de quase profissional) sobre o caso Wellington, tão em pauta, mas cujo conteúdo não domino muito bem por pura falta de TV. O que sei é que como todo o resto do país, tive abalados os meus pilares internos. Mexeu na estrutura. A coisa toda se atormentou e a minha pouca reflexão acerca do assunto talvez fosse só a tentativa falha de estabilização, de conseguir reaver a ordem em meio a desorganização que se instalava.
No momento da pergunta, milhões de coisas me vieram à mente. O comportamento primeiro de pseudo-psicóloga em formação foi sem surpresa: let's go diagnosticar o guri. Juntando os caquinhos disseminados incansavelmente pela mídia, fica fácil fazer um laudo: F20.0 - esquizofrenia paranóide, segundo a CID-10, bíblia de (quase) todo psi. Rá! Como se tudo isso fizesse alguma diferença. Wellington está morto. Dizem que enfiou uma bala na cabeça e se juntou às outras 12 crianças que tinham entre 12 e 14 anos. Aí eu me liguei. São meras tentativas de explicação. Explicações que não explicam. Projeções em problemas de segurança, educacionais, e o caos da saúde pública mostrando suas reverberações nos olhos arregalados de todos nós.
São tentativas pouco eficazes de nomeação, porque o inomeável angustia, inquieta. É angustiante olhar o disforme, inconcebível, inaceitável – como lidar com o desconhecido? Não sei. O desconhecido assombra, em especial quando se levanta gigantesco diante de nossas interdições mais primárias, ali tão bem protegidinhas por um superego eficaz: não matarás, meu filho. Muito menos farás uma chacina. Muito menos ainda fuzilarás a sangue frio. Muito, mas muito menos, farás isso tudo com crianças.
Ouvi dizer por aí, vindo de pessoas negras, brancas, amarelas, ricas e pobres, sei lá, que o guri era cruel, assassino mesmo, daqueles loucos sem cura que deveria morrer sim, que para ele não haveria perdão e que a viagem para o inferno era com passagem só de ida. Seguinte, amigos, se você, assim como eu, acredita em um Deus com “d” maiúsculo (serve o “d” minúsculo, também), a parada é que esse Deus está com as duas mãos tapando os ouvidos quando ouve tanto blá blá blá sobre esse assunto. No meu parecer diagnóstico, se ele existisse, eu possivelmente escreveria que Wellington foi tão vítima quanto as crianças que matou, e daí assinaria embaixo meu nome completo, sem abreviações.
Wellington Menezes de Oliveira, esquizofrênico paranóide ou com qualquer outra pouco importante nomenclatura psiquiátrica pela precariedade do que explica (nota-se: a palavra é explica - e não classifica), foi, antes de tudo, carne e osso, humano como eu e você – e sofreu.
Adotado, pobre e negro, Wellington recebeu balas na cabeça de uma sociedade extremamente individualista, elitista e de preconceitos velados. Balas simbólicas que vão matando aos pouquinhos. Wellington, vítima social, extirpado de seus direitos enquanto pertencente à humanidade, como tantos outros brasileiros que vejo todos os dias, pessoas como eu e você. Não planejo cair nos braços do discurso da vitimização do sujeito que é tão usurpador quanto culpabilizá-lo. Apenas acho acrítico desconsiderar os fatos e fatores que perpassam a história e vida de Wellington, pois tampouco estou interessada em cair nas graças da alienação.
Os meios de comunicação se encarregam de repetir o assunto vinte e cinco vezes por dia, só para ninguém esquecer e não perder o acontecimento. Muito de ibope, também, mas essa é outra questão. O negócio, agora, é que a gente assiste, re-assiste e assiste de novo, loucos em busca de elaboração, desvairados por dados, mínimos que sejam, que nos dêem alguma migalha de conforto. E não achamos, porque a abrangência do caso fica resumida a repetições pouco elaboradas, pela pobreza de reflexão.
A escola foi o cenário da matança – e não foi por acaso. Wellington sofreu bullying, foi rejeitado e objeto de escárnio e violência deliberada, o que é capaz de transformar até a casa da vó em um ambiente extremamente aversivo e hostil. No palco de guerra, Wellington resolveu assumir o papel de senhor das armas. E atuou. (Também não quero divagar por determinismos, nem todas as pessoas que sofrem/sofreram/sofrerão bullying cometerão assassinatos em massa, são apenas pontos a, quem sabe, considerar em nossas análises).
Jamais poderei, mesmo usando de toda a minha imaginação, conceber os sofrimentos psíquicos que puderam ser preponderantes na ação primitiva de Wellington. Digo primitiva pois a vejo como presente desde que o primeiro homem é homem: legítima defesa. Que fazer com uma dose insuportável de pulsões agressivas? Projetá-las no outro, nos outros ou no meio, é claro. Tão óbvio quanto arcaico. Posso apenas hipotetizar (e muito superficialmente) o que Wellington viveu ou não viveu desde o seu abandono pelos pais biológicos, sua adoção e como foi para ele tal experiência (assumindo-o enquanto indivíduo único e que experienciará suas vivências de uma maneira singular, conforme o permitido por suas particularidades psíquicas) chegando até a morte de sua mãe adotiva, talvez figura que correspondia ao seu ego de amparo, que atuava enquanto sustentação de sua frágil organização egóica que oscilava entre realidade e delírio nas incessantes buscas de amenizar angústias psicóticas de aniquilamento.
Estranhamente, só consegui algum conforto quando aceitei que é minha a culpa pelo sangue que manchou para sempre a escola de Realengo. A culpa me pertence. Pertence a nós. Assim como a dor e a perda de 13 famílias são por nós compartilhadas (e aqui incluo Wellington, se é que existe alguém por ele...).
Wellington matou e morreu deixando sua denúncia engasgada, cega de ódio e impossibilitada de extravasamento sensato, Wellington revelou a grande fragilidade de nossos sistemas educacional e de saúde, despreparados, falhos e insensíveis à percepção do sofrimento alheio. Professores e diretores não enxergaram os abusos que foram praticados com Wellington? A quem compete essa responsabilidade? O psicólogo pelo qual Wellington passou, há algum tempo, foi negligente ou suficientemente débil em sua formação para ser ludibriado? Quantos mais morrerão por falhas nossas? Quantas pessoas mais vivem o mesmo ou semelhante grau de desamparo de Wellington? Qual nossa capacidade de empatia para com o que sofre?
O que está feito, está feito. A crítica crua e selvagem em Realengo já deixou expostas nossas feridas narcísicas de fragilidade e de finitude, nosso desamparo social, nossa solidão coletiva. Wellington morreu, mas nos deixou o susto enquanto dormíamos. O que nos cabe, agora, é acordar.  

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

coração na roda-gigante

"[...] porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem [...]" (CFA)




Eu escreveria apenas três ou quatro palavras desconexas se assim pudesse, mas esse coração é tão teimoso, custa a deixar que algumas poucas palavras revelem o que tenho escondido. Coração engasgado. Coração mudo. Fita isolante na boca do coração. E o grito acuado.
Mas eu não o culpo, escute: não te culpo, meu coração, eu compreendo que, como qualquer outro, você tem lá suas complicações, remendos e pulsões. Não culpo não, é verdade, mas te guardaria com todo carinho num lugar no qual eu não mais te achasse, coração, porque as suas batidas soam tristes, baixinhas e tristíssimas, tristíssimas num chorinho bem choradinho de violão faltando cordas. Coração asfixiado por um travesseiro enquanto dorme.
Corre uma brisa fria no rosto, correm crianças e inquietações, e como riem essas crianças inquietas! Fui criança. E, sendo criança, um dia eu também ri sem qualquer motivo evidente, ri só por rir, para mostrar os dentes em falta que mais tarde cresceriam meio tortos. Faz tempo. Tempo, tanto tempo. A criança que fomos, onde andará agora? Já tem dentes? Como sobreviverá nesse mundo sem dentes?
Eu não quis crescer. Não quis deixar a criança ir vaguear sem rumo, pois era criança pequena, poderia se perder. Tinha medo pela criança que sem dentes estava indefesa. Tinha alguns, mas eram frágeis, dentes-de-leite. Me neguei a enxergar os primeiros pêlos na cara por essas ilusões infantis que se tem e pelas quais se teima. A criança gritou assustada por algum tempo, até perceber que era inútil tentar: o tempo passava e passava e passava e dos pêlos vieram as quedas e das quedas vieram as marcas e das marcas as rugas. Ai, os super heróis são os que mais machucam quando vão. Foram todos. Todos sem exceções. Os dentes-de-leite bambeariam, cairiam, deixariam a boca com gosto de sangue. E assim foi.
Os cavalinhos de madeira giram sincronizados. Vi-me cavalinho de madeira, petrificado que estou (ou sou?), mas o carrossel no qual existo já não funciona mais. Resistindo a sóis e chuvas, hoje é quase só ferrugem pelo chão. Coração cavalo de madeira com uma pata quebrada e sem dentes, preso no carrossel de ferrugem.
Coração mutante, bolha de sabão, roda-gigante. Quero um epitáfio mal escrito num saquinho de pipoca. Luzes coloridas piscando, vertigem, luzes, vertigem, crianças mortas, incontáveis desesperados iluminantes que súbita vontade de sair correndo com o coração na mão e ir rodar na lua, no ponto mais alto da roda-gigante. Não quis deixar a criança se afogar e morrer. Mas morreu.
Roda, roda-gigante, roda seus amantes e os beijos com gosto de algodão-doce, maçã-do-amor, um Éden e a equação da circunferência que eu nunca aprendi, focos brilhantes e olhos de serpente. Percebe? Tem sempre uma maçã vermelha na boca, um pecado bem doce para gente de alma bem amarga. Nunca resistimos. Não poderíamos jamais, pois éramos amargos e nos espancávamos por qualquer doçura que nos fosse oferecida. Tínhamos fome da vida que nos escapava entre os dentes-de-leite. Há tanta pureza que me sinto cintilar branco e crucificado entre as arestas da roda-gigante, translúcidas faces essas que habitam a roda de todos os condenados. Coração na roda-gigante. Era vida ou morte. Comigo sempre foi assim. E morremos. Coração-rei, coroa de espinhos, despido e crucificado com o peso de todos os pecados da humanidade. Pai, por que me abandonastes? Coração surdo. Nenhuma resposta.
Em um silêncio culpado de quem morde a maçã eu imploro para que a roda-gigante não pare. Rode, oh, grande Éden, gire com suas proibições e fomes de maçãs apodrecidas pelo chão, faça-me ficar entorpecido com as muitas cores e vertigens desse paraíso infernal, pois meu velho coração há tanto tempo só se alimenta de fingimentos e ilusões de todas as espécies de serpentes, num eterno pretender de risos e até de dores, nas tentativas de bater é que morremos ali mesmo, coração, entre as maçãs e as crianças mortas.
Vida fugaz, infância breve, a criança afogada flutuando na água. Como no minuto breve que há entre o agora-paraíso e o estender do braço, pegar e morder a maçã, bem diante dos meus olhos, a vida vai e vem, vai e vem, vai e...
Pega-pega, pic-esconde,
num momento todos somem.
[...]
Coração trem-fantasma.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

nas leituras de antes de dormir...

...tem sempre um Caio F. dando beijo de boa noite.  

"[...] Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tudo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto."

Caio Fernando Abreu - trecho de "Inventário do ir-remediável".

domingo, 30 de janeiro de 2011

é puro (des)amor, meu bem

Eu deveria escrever sobre você, rapaz. Sim, por que não? É bom que se escreva sobre coisas bonitas, porque tem tanta coisa feia no meu mundo, no nosso mundo, no mundo que poderia ser nosso e o que fizemos dele antes que fosse, pichamos todas as paredes, você viu? Vandalizamos, esmagamos com os pés as flores do jardim, não sei se você enxerga a sujeira toda, eu espero que não.
Tão bom seria poder colocar em palavras essas coisas todas que eu sinto e pressinto a seu respeito. São coisas muito boas. Limpas. Claras. Coisas simples. Tão bom seria, meu bem. Mas desconfio que ainda há algo não decodificado no meio disso tudo. E talvez um medo de decodificar. Paro, penso, me reviro: e se do decodificado eu acabar com letras e números piscando me dizendo que agora é tarde demais para voltar atrás?
Acho tudo uma loucura, como já te contei daquela vez. É uma loucura que num dia qualquer de abril, agosto, setembro, outubro, novembro, não sei ao certo - mas era mês interminável de café, lágrimas e oscilações de humor variando entre tristeza e raiva e nada melhor que isso - se encontre de forma tão inexplicavelmente simples uma pessoa que você deseja guardar, talvez numa caixinha para que seja só sua, talvez num amuleto para trazer sorte, talvez debaixo do travesseiro para dar sonhos bonitos.
Te confesso, agora, que toda noite penso em você com tanto carinho, meu bem, com uma doçura que chega a dar uma certa dor de cabeça, às vezes. É engraçado e eu rio porque é doce, num abobamento de endorfina. É muito doce. A cabeça lateja forte pela doçura até que eu pegue no sono. Você é muito doce, mas, quem sabe, você ainda não saiba disso, eu também nunca te disse, mas eu espero um dia poder te dizer meu bem você é tão-tão doce e que você me acredite quando eu disser, é o que peço antes de sentir a última pontada no meio da testa (a última é sempre tão forte que faz dormir profundamente).
Lembra de como nos conhecemos? Foi quase um esbarrão. Penso que talvez, mas só talvez, que naquele dia você estivesse mais perdido que eu. Perdido entre as suas lembranças e porta-retratos do avesso, numa porção dupla de agressividade e culpa deliberada. Acho que sim, bem perdido você estava, não estava? Possivelmente as pessoas perdidas se reconhecem umas as outras - mas nem todas estendem a mão. E você me estendeu a mão sem perceber que estendia a mão para um alguém desconhecido tão ou mais perdido que você. Sem conhecer e sem saber, sem se dar conta foi que a tua mão quente encostou na minha mão fria e da troca de calor veio o suspiro – de alívio, não se está completa e irremediavelmente sozinho então, há aqui uma mão quente – colada a minha mão fria nessa escuridão que delicadamente chamamos de ir-tocando-a-vida.
Acho ainda que, talvez, se você tivesse pensado melhor, ponderado, observado mais de perto, teria mantido as suas mãos dentro dos bolsos da calça, segurando seu jeans surrado com mais determinação para não ceder aos impulsos de pular na água e salvar o afogado, quer dizer, de me estender a mão. E talvez eu não teria se quer te visto passar, teria permanecido tapando os olhos com as minhas duas mãos metidas no rosto, com toda a (in)decisão de quem não sabe e nem quer saber, não quer ouvir, não liga mais. Mas você me apareceu enquanto uma possibilidade de saída do poço enquanto eu te apareci como possibilidade impossível de um amor.
E foi tão corajoso que às cegas você me estendesse a mão quente, meu bem, bem a mim que não tinha calor para te oferecer, só um congelado dentro do peito que, aos trancos e barrancos, ainda pulsava e não se sabia até quando porque no meu poço era difícil respirar e a falta de oxigenação dava umas pontadas na cabeça bem no meio da testa antes do enjôo e subsequente desmaio.
Mas escute: não vamos fantasiar demais, não vamos nos entregar à loucura toda, não. Vamos ter bem claramente que eu sou mais uma no meio da sua coleção de casos mal resolvidos, mas talvez com uma dose maior de ilusão. Talvez. Embora um tanto empoeirada, fico até bonitinha na sua estante. Nos envolveremos sem nos envolver. Só superficial que é para não marcar ninguém. Aqui mesmo da estante vou te amar mais do que sei e depois esquecer seu nome. Você, por favor, meu amor, faça o mesmo. Prove que me ama mais do que tudo me esquecendo ali na próxima esquina, enquanto paga uns trocados a uma garota de minissaia que te faça sentir como um homem. Você tem medo de que, baby? Queimaduras, contusões, uma facada perfurando o fígado? Medo de sair da sua concha de fantasia irrealizável, mas que te traz tranquilidade, a sensação de alma sustentada de acasos e desencontros?
Tenhamos bem claro também que eu não me mostro além do que os seus olhos alcançam do sofá até essa prateleira aqui da estante, mas é porque eu tenho medo. Sou medrosa de dar pena, baby. Tenho um medo de que se me olharem mais fundo não haja nada além de um grande espaço oco, só um buraco com um eco gritando que algo ou alguma coisa essencial a mim já esteve ali – mas não está mais, se perdeu, enfim, e eu não sei nem por onde começar a procurar, meu bem, não sei. É medo de queimadura, contusão, facada no fígado, medo de sangrar até esvair sem me dar conta disso. Medo louco de tentar e não conseguir sentir a faca entrando.
Então com a sua mão quente você me crava entre as costelas a fria lâmina da faca. A lâmina entra até o cabo de madeira quente, e eu não sinto dor. Está tudo, tudo bem, meu bem. Coloco a minha mão fria sobre a ferida quente, o sangue é vermelho vivo. Ajoelho no chão frio e tusso. Escapa sangue golfado pela boca. É quente.
Vou morrer, vou morrer e não é de amor, eu repito delirante, cuspindo sangue nos teus sapatos. Falo de amor pelas madrugadas, bares e livros com toda a maestria de quem nunca amou na vida. Saio sem rumo inventando amores de todas as formas, de todos os becos, só para saber se ainda sou capaz de amar, só para sentir a faca entrar. E amo todos. E não amo ninguém.
Poças de sangue, poços meus, caio de lado numa anestesia de endorfina. Pontada no meio da testa, bem no centro do ser. É tão doce que enjoa. Nenhuma mão fria ou quente que segure a tua, na hora de partir. Puro (des)amor. Vou morrer – e não dói.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

soco no estômago

Nossa história é história mal contada. Daquelas histórias que já começam de pernas para o ar e em meio à bagunça, poeira, traças, caos e móveis usados. Uma dessas histórias sem glamour, baby, cheia de engasgos, batom borrado, rímel escorrido, cabelos desgrenhados, barba há uma semana por fazer. É filme do avesso que casalzinho nenhum dá beijo depois dos créditos, sem era-uma-vez e sem essa de foram-felizes-para-sempre, sem essa: era realidade crua, carnificina estampada no teatro da vida real, realidade cuspida.
E nessas histórias de vida real todos amam errado, e por isso nós também amávamos errado, como quase todo mundo, mas amávamos muito, como só os poucos loucos de pedra podem amar. Na verdade, a loucura maior reside no fato de que já sabíamos que seria assim quando o jogo começou, e mesmo assim jogamos. De corpo e alma, jogamos – mas sem fé. Apaixonados é que fomos à luta. Loucos.
Acho extremamente complicado que se jogue sem fé (mas jogamos) porque a fé é o que dá força – e portanto, jogamos sem força. Pirados. Só cegos em meio ao tiroteio. Éramos fracos, resumindo. Mas jogamos pelo tal amor (e suas complicações) e não que tenha valido a pena, longe disso, éramos apenas loucos amarrados à camisa de força lutando desesperadamente por escapar de um hospício em chamas que só existia no nosso delírio.
Melhor dizendo, não foi jogo, foi pior: foi uma aposta na qual se deixou a vida toda a Deus dará. E deu no que deu: três anos de terapia (de duas a três vezes por semana), noites sem dormir e olhos secos (quase todo dia da mês), coquetéis de valium, rivotril, prozac (brindes diários e em sua homenagem), pensamentos de união entre objetos cortantes e os pulsos (dia sim, dia não...). Fracasso (sempre, sempre). Três socos no estômago, fiquei sem ar. Murro em ponta de faca machuca, mon amour – eis a lição que não aprendi. E que nunca aprendo.
I never learn, baby, então eu digo: te quero. Eu te amo. Eu te amo tanto tanto tanto, chega a doer, baby. Bate, dói, sai um bocado de sangue. É babaquice, carência, teimosia, apego, masoquismo, fetiche, melancolia, hábito, pátio vazio, fantasias inconscientes. Não, cara, é só loucura. Amor é só loucura, Freud não explica – e dói, eu repito.
Bebendo da fonte da insanidade até sentir a ânsia e o enjoo, até perder as noções existenciais entre eu-e-o-outro para que se permita a despersonalização. Afogar o próprio ego até a morte para que se aceite correr o risco da aniquilação ao dizer as-três-palavrinhas-mágicas-soco-no-estômago: EU TE AMO. Não contente, via de regra segue-se com: preciso de você (como preciso de água e ar), cuida de mim (implorando como criança assustada), porque meu coração é seu (concluindo a surra). O soco no estômago para que não se perceba o risco que é entregar o coração na mão de outra pessoa e dizer ''cuida''. E olha que seu coração pode nem ser cuidado direito, então cuidado, cara. Porque pode ser que seu coração vire enfeite de estante, quadro no canto da sala, suporte de lata de lixo, peso de porta ou de papel. Tudo aquilo que não vale meio centavo, e você sabe que coração não suporta (ou não deveria suportar) ser insignificante.
Por isso eu digo, eu cuido de você, se você voltar, se vier me visitar numa tarde de sábado, talvez domingo, talvez de primavera, mas pode ser de inverno também. E que então, sendo minha criancinha assustada, você peça com todo carinho, bem baixinho e ao pé do ouvido, cuida-de-mim.
É nesse momento que eu entro de novo no jogo (sem fé e sem saber jogar), e faço uma dessas apostas altas que não posso pagar com a miséria de coração no peito que me restou, te conto sobre objetos cortantes e pulsos, coquetéis, segredos e mentiras que contei na terapia, e mais, te digo que a realidade sem você é crua e nua e machuca mais que soco no estômago, baby e que você pode seguir as tuas estrelas, a tua estrada que já tem destino certo e traçado, tudo mi-li-me-tri-ca-men-te calculado e feito pra dar certo, pra não correr os riscos que há entre o viver e morrer, você pode sim. Ou pode vir comigo pelo meu caminho enlameado e sem futuro que vai de incerteza em incerteza, conforme a correnteza, mas que tem mãos dadas e uma lua bem bonita que pode até ser sua se você quiser. Vem comigo, sim? Porque num desses desviar de olhos mãos pulsar de coração - natural e infelizmente - a gente se perde, baby e é pra todo o sempre.
Fica comigo, eu disse, que eu te cuido com todo cuidado do mundo de quem cuida de porcelana chinesa, pergaminho hebraico, peça de museu. Fica comigo porque te amo e te preciso como a tua lua precisa do céu pra continuar sendo lua. Meu céu.
Você. Lua. Eu. Meu. Sua. Minha. Céu. Seu - E soco no estômago.

domingo, 23 de janeiro de 2011

os icebergs são saudades, baby

Olha, queria dizer que hoje senti um abismo imenso entre eu e você, e isso me incomodou de um tanto. É um abismo de icebergs pontiagudos, gelados, pesados, tão maiores que eu e você: intransponíveis. O que mais me incomoda, aqui parada, admirando as pontas finas e perigosas dos icebergs é saber que esse gelo todo veio da gente mesmo, do interior do interior também chamado de fundo-da-alma, do inverno de dentro do coração pulsando temperaturas insuportavelmente frias, deixando os dedos com um arroxeado terrível, enchendo de pequenas pedrinhas brancas os nossos pelos e cabelos.
Queria te dizer também que ainda há pouco eu estava me lembrando daqueles tempos sem abismo, quando, jogados no tapete da sala, ouvíamos Cazuza como se não houvesse amanhã e bem naquela parte em que ele canta “você me chora dores de outro amor, se abre, e acaba comigo...”, você me agradecia pelas tantas e tantas vezes em que te ofereci um ombro para que você chorasse o seu amor-para-sempre-perdido, ou sem meias palavras te mandava acordar, boy, that's life – e continua, continua sempre.
Até que numa dessas noites quentes entre uma divagação sem sentido que levava a outra divagação de sentido ainda menor, depois de um copo de conhaque e outro, quando eu já começava a ficar um pouco tonta, talvez um pouco enjoada, eu te perguntei, afinal, o que era amar alguém. Então você me respondeu em CLICHÊ-todo-no-maiúsculo que o amor era uma dor, balbuciou palavras que se escutam na telenovela das oito da noite e se lêem nos romances água-com-açúcar. Nesse momento eu desejei cheia de compaixão que o amor não tivesse te ouvido dizer babaquices, mas, caso tivesse, pedi que te perdoasse, pois você sofria como quem crucificou o santo-filho-de-deus e eu sentia dores de cruz pelo teu sofrimento: você não sabia o que dizia.
Antes que eu dissesse palavras duras como desencana-baby-você-está-anos-luz-de-saber-o-que-é-amor ou simplesmente te desse aquele silêncio de quem deixa o outro se perder no próprio monólogo que você tanto detestava, você continuou as suas divagações sobre o que você então concebia enquanto amar-a-alguém com: o amor é assustador, menina. Dessa parte eu gostei, despertou algo como uma dúvida latente, uma inquietação e foi nessa falta de paz que eu quis entrar, quis discordar. Te disse que se deve achar o amor piegas bobo fútil inútil tolo banal perecível sentimentalóide sem sentido, qualquer coisa, só não assustador. E você aceitou a briga de verdades-pessoais e cheio de certeza argumentou que tem coisas que não deveriam assustar, mas assustam porque pegam de surpresa a vida da gente e chacoalham e despedaçam tudo como num liquidificador em máxima potência. Eu entendi. Foi aí que eu concordei.
Como de praxe na forma de relação que estabelecemos ao longo desses muitos dias de convivência, em contrato social assinado sem nenhuma letra, mas não menos irrevogável, uma pergunta feita a um, pelo outro, era motivo mais que suficiente para que a pergunta adquirisse formas de bumerangue, e que, portanto, voltasse ao ponto do qual havia partido, nesse caso, o ponto eu estático ali jogado no tapete da sala, olhando para o teto enquanto ouvia você dizer sem parar esse monte de besteiras sob a meia luz da voz rouca de Cazuza.
Eu tive medo de esbarrar em todos aqueles clichês espalhados pelo tapete, pairando no ar, rodando na minha mente. Travei. Três minutos olhando para o teto, nenhuma palavra. Respirei fundo. Sem jeito eu disse que, meu caro, não posso responder, não sei o que é o amor. Não faço a menor ideia, a menor. Eu nunca soube, pois eu desconfio, na verdade, que eu nunca tenha amado ninguém.
Você, sempre tão teimoso, parou, me olhou com certo desprezo nos olhos e disse tal qual criança obstinada que não acreditava, e que, como aprendemos com o pequeno príncipe dos cabelos cor de trigo, que lemos juntos e jogados nesse mesmo tapete, jamais se deve deixar de lado uma pergunta. OK, você usou o melhor argumento possível, nenhuma experiência em advocacia faria melhor. Então parei de ponderar e deixei o fluxo de consciência seguir livre. Comecei com meu clichê (sim, clichê, porque depois me dei conta, somos tão piegas, não é, baby?), disse bem seriamente, quase forçando a voz, falando mais grosso que de costume, que no amor não há que se pensar, só que se sentir - e se deixar engolir pelo turbilhão de emoções. O amor era um risco, então. Continuei tropeçando nas palavras: olha, acredito que amor seja mais ou menos quando você acorda pensando naquela pessoa e ela se mistura ao seu pão-com-manteiga-e-café e nas notícias do jornal você é capaz de ler o nome dela nas entrelinhas. Aí você vai trabalhar e no meio do caos da cidade grande, você consegue ouvir os passarinhos e nem é verão ainda, entende? Você passa o resto do dia inteiro vendo essa pessoa invadir seus pensamentos todos, o que te distrai dos problemas e das obrigações, você faz tudo errado, e é aí que seu chefe te dá uma bronca memorável, mas você nem liga tanto para isso, afinal, você tem aquela pessoa, que importa o mau humor do chefe, não é? Depois, é o pensar nessa pessoa que faz com que você mantenha a calma no trânsito infernal de uma São Paulo enlouquecida em plenas seis horas da tarde. E você pensa nela enquanto toma banho ou vê TV, e depois vai dormir pensando nela, e pensa nela até pegar no sono. E depois sonha. E no sonho vocês fazem um filme, comem doce, se beijam de mil formas diferentes, começam a cavalo no Texas e terminam de barco numa lagoa que nem existe, e no final pode ser até que façam amor, numa cama, numa rede, no tapete da sala. Pausa. Olhos no teto. Olhos nos olhos. Escute, sinceramente, você morreria por ela. É isso! É isso, apaga todo o resto: amar é morrer por. Porque não há nada mais importante que a própria vida, exceto aquela pessoa. E então você aceita morrer por ela, seja na guilhotina da monarquia inglesa, na câmara de gás dos nazistas, no pelotão de fuzilamento, na cadeira elétrica, na injeção letal, não importa, você morre sim e sem pestanejar (e morreria suas sete vidas se fosse um gato).
Você riu. Disse qualquer coisa como você-pensa-coisas-tão-malucas-menina-chega-a-ser-engraçado e me deu um daqueles beijos estalados na ponta do nariz.
Não tenho os ácaros daquele tapete aqui, aqueles que fazem a minha rinite entrar em surto de espirros. Só tenho tantas lembranças, meu bem, todas guardadas em pequenas caixas de veludo vermelho sangue em cofre de coração partido, sabe? Queria te ligar qualquer hora dessas e dizer ei, cara, vamos nos jogar naquele tapete empoeirado como dois gatos que só tem mais uma vida para viver?
É que agora já faz tanto tempo, mais de um ano. As dores da saudade, depois de muito latejarem, agora, talvez, nem doam mais. Estou um tanto calejada de sentir saudades suas, uma fome que nunca passa, que nada sacia, mas que eu não mendigo mais migalhas de pão tentando fazer parar o roncar do estômago, porque o roncar já virou música. Não tenho mais nenhuma lágrima escorrendo das feridas nem tampouco a antiga voracidade de devorar o mundo. Mas sabe que, tão engraçado, agora, olhando tudo o que ficou para trás, ter um coração ritmado, batendo em paz. O que você tem feito da sua vida, baby?

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Sobre ciladas, mendigos, sarjeta e superbonder

Durante algum tempo eu achei admirável essa história de amor. Sabe? Desses amores de cinema aos domingos, mãos dadas, vestido florido, ansiedades e flores nos olhos. Eu até acreditei que fossem verdades essas conversas que ouvi no rádio. Foi então que aos poucos e sorrateiramente, você sabe, isso quer dizer que foi sem que eu me desse conta, fui me tornando, também, uma descrente. Tudo bem, talvez não tenha sido tão sorrateiramente assim, a gente não dorme crente e acorda cético, não dorme apaixonado e acorda indiferente: não, não, a gente vai se unindo às ciladas da vida, do mundo, dos outros, até se tornar a própria cilada. Eu, cilada. Não se mete comigo, meu caro, porque parafraseando o Drummond, quando eu nasci um anjo torto, desses que vive no caos, veio e me falou: e serás cilada, minha filha, ci-la-da.
Andei pensando nessas confusões de amor. Nesses extremos crimes passionais e pessoas para sempre perdidas, nesses corações para sempre partidos sem superbonder, nesses amigos para sempre sumidos um em cada canto, sozinhos-sozinhos enlouquecendo à caça de outros amigos, na tal da alteridade e amor ao próximo para sempre esquecidos no bar da esquina, no mendigo bêbado e jogado na sarjeta que... tem mendigos aqui nessa cidade, meu amigo? Não ouvi resposta.
Rolei de um lado para o outro da cama. Foi terrível passar uma noite inteira pensando em amor. Terrível, terrível. Amor não foi feito para ficar pensando sobre, porque se você pensa em cima do amor... já era, meu amigo, perde todo o irracional a ele inerente, deturpa a ideia, estupra a essência e os resultados são desastrosos: você se torna, também, uma cilada. Uma cilada de descrença. Cilada para o coração do outro, compreende? Para o outro que ainda não saiu por aí com uma metralhadora de racionalizações mirando nos sentimentos humanos, que ainda mantem os sonhos guardados para que nenhuma pessoa cilada, como eu e você, destrua tudo e o pobre acabe cilada como nós. Cresce o número de pessoas-cilada, deu no jornal (ou na tv, não lembro agora).
Como eu ia dizendo, eu nem sempre fui cilada, aconteceu depois, embora o anjo já tivesse previsto. Não há o menor sentido em revelar aqui, onde, como e quando eu adentrei ao grupo dos cilada. Eu também não sei. Deve ter sido depois dos amigos que se foram, dos amores que morreram, dos mendigos que eu não vi, das grandes coisas que não deveriam ir, mas vão – e não voltam mais. Para a nossa nostalgia de quase todo santo dia, restam só as lembranças já meio borradas de tempo passado, amareladas feito fotografias velhas num álbum que se perdeu.
E eu só fiquei aqui, parada. Assistindo as coisas acontecerem comendo pipoca sem sal. Porque eu tinha tanto tanto medo de não encontrar, tinha tanta tanta fome de um não sei quê, tanto tanto medo de me perder, porque nós tínhamos tanto tanto medo de cair, ralar o joelho e chorar, porque a mãe advertiu que ''lá fora'' tinha tanta gente cilada, mas eu não ouvi apesar do medo, e da fome, e do joelho ralado – e foi aí que eu chorei. Ai, doeu por noites e noites meu coração quebrado sem superbonder aqui nesse quarto onde eu sozinha-sozinha inutilmente tentava encontrar amigos no escuro.
Porque sim porque não porque talvez porque não sei porque tem tanta gente no mundo tanta gente cilada nos arrancando pedaços da carne com as unhas e as minhas unhas não eram grandes e me arranhavam e me arranharam e me arrancaram partes para saciar fomes insaciáveis que não eram de carne ou sangue e agora eu vejo as minhas grandes unhas postiças e às vezes eu me machuco com elas porque meu Deus depois de tanto me debater sobre o mundo e dizer que não, não, que eu não queria desacreditar, que eu precisava continuar acreditando nessa sujeira toda que se chama eu o outro e todos nós sem exceções, foi que o mundo me mostrou os tantos mendigos andando pelas ruas de vestidinhos floridos, de tênis e meia, de camisa e gravata, de calça jeans, não mais jogados nas sarjetas de pedra e concreto, mas nessas sarjetas que a gente esconde dentro da cabeça e mascara com a neurose e o sorriso e a maquiagem e uma boa esteticista.
E com uma metade do brinquedo quebrado em cada mão a gente só sente o nó começar a tomar conta da garganta, inspira/expira, engole seco, encontra um ponto fixo e olha firme, diz que tanto faz, que afinal não era tão legal assim, que não tinha importância e que o natal está sempre aí, de qualquer forma e que na pior das hipóteses ganha-se um brinquedo igual – ou até melhor, quem é que sabe?
Estou inexoravelmente envolvida nesse lixo todo, nessa confusão, me equilibrando para não cair com a cara no charco, você me compreende? Parada de novo, em meio ao trânsito engarrafado de mendigos brancos, negros, altos, baixos, loiros com ou sem lente de contato, com ou sem as roupas da moda, com ou sem maletas e bolsas e aparelhos celulares e cigarros e drogas nas mãos, foi que eu quis sentar na sarjeta. Sentei e vi mais claro, faz um céu azul pra esses mendigos cinza. A surpresa ao ver mais de perto foi perceber que a sarjeta já estava em mim. E fazia um tempo. A sarjeta foi ganhando valor e influência, fui me amoldando à cara da sarjeta.
E tudo o que você faz, pensa, age, sente, representa expõe mais e mais e ao máximo nível toda a tua miséria humana decadência lixo patifaria, esse teu grande lado sujo, as tuas muitas caras de maquiagem escorrida quase até o queixo da máscara, esse buraco negro e cheio de vermes e bichos rastejantes que você se tornou ou que talvez você sempre foi, embora as pessoas não enxergassem a tua pobreza de mendigo por misericórdia, amor, compaixão, cristianismo, pura insensatez, qualquer coisa do gênero. E porque eu também sou transbordante em misericórdia amor compaixão cristianismo com validade vencida e insensatez, pura e muita insensatez e mesmo assim não te suportei vomitei cuspi rejeitei teimei em não aceitar as tuas artimanhas, armadilhas, inverdades, ci-la-das e empurrei o prato com toda a força da minha fobia a vermes, bichos rastejantes e almas pela metade.
Acabou o superbonder do mundo, meu amigo. Estou na sarjeta e sem rumo e não quero nenhum mendigo que me dê a mão e me mostre caminhos. Não quero essas unhas grandes e famintas me ferindo até o osso. Me encrespei numa casca de orgulho que se cutucar sangra: agora sou cilada.

grita, Caio F. !

Escuta aqui, cara, tua dor não me importa. Estou cagando montes pras tuas memórias, pras tuas culpas, pras tuas saudades. As pessoas estão enlouquecendo, sendo presas, indo para o exílio, morrendo de overdose e você fica aí pelos cantos choramingando o seu amor perdido. Foda-se o seu amor perdido. Foda-se esse rei-ego absoluto. Foda-se a sua dor pessoal, esse seu ovo mesquinho e fechado.

Caio Fernando Abreu (Caio F. só pra quem é íntimo) - Ovelhas negras

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

qualquer banco, qualquer praça

(... ou até sapatos sujos)


Quinze minutos de atraso – algumas manias não se perdem nunca – pensou. Sentado no banco daquela praça, com os sapatos sujos, as mãos geladas, olhos no relógio, mãos inquietas, mãos no bolso para pegar um daqueles cigarros baratos que acabariam por matá-lo. Acendeu. Tragou com força de pulmões sedentos. Fumaça subiu como um suspiro.
Ela chegou – atrasada e radiante como sempre – depois de tanto tempo ainda tinha a mesma mania de iluminar. De fato, ainda mantinha algo de encantador, de inocente, de princesa disney que impulsivamente come a maçã e quando vê já é tarde demais e precisa de um príncipe para salvá-la, mas não aquela princesa, aquela era diferente, eu vi - vivi, quando um belo dia, depois de acordar com o corpo enrolado ao meu, sem rodeios, me disse: olha, cara, paramos por aqui. Segue a tua vida, esse nosso re-la-ci-o-na-men-to (e fez aspas com os dedos) anda muito hardcore pro meu gosto musical. Te gosto, mas... compreende?
Águas passadas, quem se importa? Nada como um dia após o outro e mundo girando. E agora ela estava ali, bem ali, e tossia pela fumaça do meu cigarro vagabundo que depois apaguei pisando com meu sapato sujo.
Ela sentou no banco. Perto. Não, não, um pouco perto – o suficiente pra sentir aquele perfume doce de sempre e ter uma leve, discreta vertigem. Passada a tontura, iniciou-se o teatro: oi-tudo-bem-como-vai-você-quais-as-novidades-da-sua-vida, como-você-está-mudado ou ainda você-ainda-fuma-tanto-assim.
Quis interrompê-la e dizer olha sim, baby, minha vida continua a mesma – mas sem você – o que não me faz a menor diferença. E olha, não, não estou mudado, talvez eu tenha amadurecido um pouco, sem toda essa sua futilidade e labilidade pra influenciar, e sim, continuo auto destrutivo com meus cigarros-suicídio, meu amor, como deve ser, ainda durmo três dias seguidos e ainda tenho noites de insônia, vivo de excesso em excesso, na corda bamba do 8 ou 80, porque não me interessa o que você acha. Mas, tudo o quis dizer foi contido, e o que foi falado foi um quase sussurro de estou-bem-obrigado.
Por um momento, não sabia, afinal, que diabos fazia ali, sentado naquele banco de praça com aquela princesa disney que o fizera o sapo-vilão-lobo-mau-ou-bobo-da-corte de sua particular historinha infantil. Então era isso que ela queria? Não sou seu personagem, baby, me deixa fora dos teus delírios.
Ela chegou mais perto – ele se encolheu – ela encostou no ombro dele – ele, estátua - Então era isso, bitch. Pensou em se desvencilhar dela, mas por qualquer coisa do tipo delicadeza, cavalheirismo, medo ou formação reativa deixou que ela ficasse ali, com aquele perfume entorpecente.
Então ela falou em saudades. Falou algo como sinto-sua-falta e quis ressuscitar as recordações que a que duras penas jaziam em paz, amém.
A vertigem do perfume melado o desnorteou ainda mais. Talvez pela proximidade, talvez só pela companhia daquela mulher, talvez pelos afetos loucos gritando dele, não importa, fato é que estava quase bêbado de qualquer coisa que ainda não sabia dar nome, e escutou as palavras saindo, descontroladas, procurando ouvidos aos quais ferir, olha, não abusa, menina, não me venha com esses lamentos.
Verdade seja dita, meu bem: nos transformamos um ao outro, gradativamente, dias após dias, tédios, insultos, tapas na cara e simbólicos venenos na bebida, em tudo aquilo que mais odiávamos no mundo, aquilo tudo que desprezávamos e pisávamos sem rastro de piedade.
As palavras pesaram. Ela se espantou, desencostou daquele ombro magro, olhou com olhos meio assustados para aqueles olhos meio moribundos – mas invasivos. Necessárias seriam umas muitas doses de vodca e conhaque, mais tarde. Um minuto de silêncio para o fim do amor – e um insight para a libertação – te odeio, ele disse, te odeio muito. Isso é porre de ódio, então. Não faço parte do seu jogo, não gosto do seu tipo manipulador e o seu perfume é péssimo. Não conte comigo nos teus contos de fadas, menina - e como quem repete o drama, continuou – segue a tua vida, na verdade, você sempre foi música-clássica-com-pop piegas demais pro meu hardcore.
E agora ela já poderia pegar sua Victor Hugo falsificada, sair enxugando as lágrimas e ir sofrer calada por ser aquela princesinha que o príncipe não salva do calabouço, nem do dragão, nem bruxa má. E ele poderia só ficar ali, sentado por algum tempo, acender mais um cigarro, daqueles, de gosto de morte em parcelas, e procurar algum caminho torto o suficiente que o levasse pra longe de toda aquela parafernália cor-de-rosa de guria de prédio. Só um caminho torto e sujo, para sapatos sujos.