quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

coração na roda-gigante

"[...] porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem [...]" (CFA)




Eu escreveria apenas três ou quatro palavras desconexas se assim pudesse, mas esse coração é tão teimoso, custa a deixar que algumas poucas palavras revelem o que tenho escondido. Coração engasgado. Coração mudo. Fita isolante na boca do coração. E o grito acuado.
Mas eu não o culpo, escute: não te culpo, meu coração, eu compreendo que, como qualquer outro, você tem lá suas complicações, remendos e pulsões. Não culpo não, é verdade, mas te guardaria com todo carinho num lugar no qual eu não mais te achasse, coração, porque as suas batidas soam tristes, baixinhas e tristíssimas, tristíssimas num chorinho bem choradinho de violão faltando cordas. Coração asfixiado por um travesseiro enquanto dorme.
Corre uma brisa fria no rosto, correm crianças e inquietações, e como riem essas crianças inquietas! Fui criança. E, sendo criança, um dia eu também ri sem qualquer motivo evidente, ri só por rir, para mostrar os dentes em falta que mais tarde cresceriam meio tortos. Faz tempo. Tempo, tanto tempo. A criança que fomos, onde andará agora? Já tem dentes? Como sobreviverá nesse mundo sem dentes?
Eu não quis crescer. Não quis deixar a criança ir vaguear sem rumo, pois era criança pequena, poderia se perder. Tinha medo pela criança que sem dentes estava indefesa. Tinha alguns, mas eram frágeis, dentes-de-leite. Me neguei a enxergar os primeiros pêlos na cara por essas ilusões infantis que se tem e pelas quais se teima. A criança gritou assustada por algum tempo, até perceber que era inútil tentar: o tempo passava e passava e passava e dos pêlos vieram as quedas e das quedas vieram as marcas e das marcas as rugas. Ai, os super heróis são os que mais machucam quando vão. Foram todos. Todos sem exceções. Os dentes-de-leite bambeariam, cairiam, deixariam a boca com gosto de sangue. E assim foi.
Os cavalinhos de madeira giram sincronizados. Vi-me cavalinho de madeira, petrificado que estou (ou sou?), mas o carrossel no qual existo já não funciona mais. Resistindo a sóis e chuvas, hoje é quase só ferrugem pelo chão. Coração cavalo de madeira com uma pata quebrada e sem dentes, preso no carrossel de ferrugem.
Coração mutante, bolha de sabão, roda-gigante. Quero um epitáfio mal escrito num saquinho de pipoca. Luzes coloridas piscando, vertigem, luzes, vertigem, crianças mortas, incontáveis desesperados iluminantes que súbita vontade de sair correndo com o coração na mão e ir rodar na lua, no ponto mais alto da roda-gigante. Não quis deixar a criança se afogar e morrer. Mas morreu.
Roda, roda-gigante, roda seus amantes e os beijos com gosto de algodão-doce, maçã-do-amor, um Éden e a equação da circunferência que eu nunca aprendi, focos brilhantes e olhos de serpente. Percebe? Tem sempre uma maçã vermelha na boca, um pecado bem doce para gente de alma bem amarga. Nunca resistimos. Não poderíamos jamais, pois éramos amargos e nos espancávamos por qualquer doçura que nos fosse oferecida. Tínhamos fome da vida que nos escapava entre os dentes-de-leite. Há tanta pureza que me sinto cintilar branco e crucificado entre as arestas da roda-gigante, translúcidas faces essas que habitam a roda de todos os condenados. Coração na roda-gigante. Era vida ou morte. Comigo sempre foi assim. E morremos. Coração-rei, coroa de espinhos, despido e crucificado com o peso de todos os pecados da humanidade. Pai, por que me abandonastes? Coração surdo. Nenhuma resposta.
Em um silêncio culpado de quem morde a maçã eu imploro para que a roda-gigante não pare. Rode, oh, grande Éden, gire com suas proibições e fomes de maçãs apodrecidas pelo chão, faça-me ficar entorpecido com as muitas cores e vertigens desse paraíso infernal, pois meu velho coração há tanto tempo só se alimenta de fingimentos e ilusões de todas as espécies de serpentes, num eterno pretender de risos e até de dores, nas tentativas de bater é que morremos ali mesmo, coração, entre as maçãs e as crianças mortas.
Vida fugaz, infância breve, a criança afogada flutuando na água. Como no minuto breve que há entre o agora-paraíso e o estender do braço, pegar e morder a maçã, bem diante dos meus olhos, a vida vai e vem, vai e vem, vai e...
Pega-pega, pic-esconde,
num momento todos somem.
[...]
Coração trem-fantasma.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

nas leituras de antes de dormir...

...tem sempre um Caio F. dando beijo de boa noite.  

"[...] Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tudo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto."

Caio Fernando Abreu - trecho de "Inventário do ir-remediável".