sábado, 3 de setembro de 2011

Ah, os dias cinza...

"[...] Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo. Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce..." (Caio Fernando Abreu - In: Os dragões não conhecem o paraíso)


Acordei, abri a janela do quarto: está um sol lindo. Um dia lindo. Tudo lindo. Tudo lindo-lindo e eu preciso escrever, mas não tem aqui angústia nenhuma. Fotofobia. Não ter angústias me angustia, pensei. Não estou acostumada com coisas dando muito certo, parece a calmaria que (imagino eu) deve trazer um tornado minutos antes de devastar uma cidade inteira. Precisava escrever, precisava. Há dias precisava. Mas não tenho tido muito tempo para fazer um corte aqui e outro ali, esperar sangrar, cicatrizar e etc. A vida anda escapando e os únicos esforços são para economia de tempo - e de energia física e mental, de dinheiro, de sono, de coragem, de lucidez.

Às vezes me incomodam esses dias lindos de sol quente. Esse calor me abraçando forte, pessoas por todos os lados, falando e cantando e dançando e bebendo e sorrindo e tomando sorvetes de flocos. Por isso me lembro de dias cinza. Resgato da memória minha parte monocromática. O céu cinza leva a gente de encontro a tudo aquilo que queremos deixar debaixo dos panos, inexoravelmente. Já quis tapar dias cinza com pequenos sóis até perceber que era inútil. Alimentei um monstrinho ou outro debaixo da cama, em especial, sob dias cinza. O cinza aumenta a fome – e a fome não passa.
Então olho o céu cinza da minha foto de um dia cinza de uma alma acinzentada, coração comprimido e penso: olha, cara, é verdade, "os dragões não conhecem o paraíso" - ou não sabem lidar muito bem com ele. Tem tanta paz aqui que não me decidi se guardo em caixinhas, para que não falte mais tarde quando e se o tornado vier, ou se vivo tudo até enlouquecer de felicidade.


Graças a Deus (e transcendendo aqui a força de expressão), tenho aprendido com pessoas tão lindas quanto um céu azulzinho a ser feliz. Ser feliz em doses homeopáticas, devagarzinho para não sair correndo, porque muita felicidade me assusta. Apesar do medo, ser feliz é bom, dá uma vida na gente, ilumina. Quase não sinto saudades dos meus dias cinza. Daqueles meus dias de ensimesmamento, de cápsula autista, de me trancar em mim e não deixar ninguém se aproximar. As pessoas azul-céu-clarinho chegam com cuidado, batem na porta - eu abro sem me dar conta de que elas não deixam o cinza entrar, e quando ele consegue chegar perto, logo se dissipa. A luz não aceita o cinza.
Por vezes pensei que a felicidade estava extinta. Ser feliz não não não, nunca mais, muito obrigada. Agora - e só agora - vejo tudo mais claro, menos cinza: mentira, a felicidade se ausentou apenas para voltar mais azul- clarinho...
Paro e olho fotos que tirei da vida, ao longo de meses e anos, capto meus dias cinza. Olho-os firme, nos olhos do cinza. Sinto-os em mim mais elaborados – talvez até menos cinza do que eram, como se os monstrinhos tivessem perdido os dentes. Na época o cinza era quase negro, negro buraco-negro. Mas agora é cinza, apenas. E não ofusca meu céu azulzinho. Cresci tanto, amadureci e hoje sou fruta mais apreciável.
Acordei, abri a janela do quarto: bom dia, céu-azul-clarinho. Qual a previsão de tornados para hoje?

terça-feira, 7 de junho de 2011

O eu e o último

De repente me bateu uma vontade de saber de você. Uma saudade grande que escrevo fingindo que você vai ler só pra não ir até o seu portão no meio dessa chuva, interfonar em todos os apartamentos do seu prédio até descobrir qual é o número em que você mora e então não conseguir dizer uma só palavra e boba e parada e molhada e morrendo de frio assistir as minhas falas decoradas virando fumaça assim que ouvisse a tua voz.
Confesso que não sei porque fui ouvir aquelas músicas. Aquelas lá, que ouvíamos tanto e que, agora, soam diferentes. Acho que fui ouvir pra te procurar. Faz frio lá fora (ou aqui dentro?). Não sei. E minto. Mas tudo bem, eu não minto pra ninguém – exceto pra mim – mas eu não me acredito. Pra dizer a verdade, acho que sou eu que estou diferente. Talvez mais triste, elaborando lutos enquanto me debato em paredes de memórias pra não te lembrar, numa negação que me consome todas as energias e então exausta eu tropeço em canções que me levam direto pra você. E te lembro, todo dia, todo dia. Então descanso.
Olha que se eu te procurasse e você me atendesse eu diria que queria ter você. Perto, longe, tanto faz. Teria construído um mundinho que é sempre hora de ficar. Fica, sim? Só mais um minutinho, no meu mundinho que poderia ser nosso e não foi, só mais um dia, uma semaninha, um mês... uma vida? E não vamos perder tempo falando das nossas diferenças, certo? Não vamos falar de como você é branco e eu sou preto, de como eu vou a passos largos pela esquerda nos meus caminhos tortos enquanto você vai pela direita e protege com unhas e dentes a sua retidão, de como você é a lei e eu vou fazer uma rebelião a qualquer momento, de como você vai viver cem anos ou mais e eu quiçá a metade disso, não vamos não, porque é perder tempo. É perder tanto tempo, meu bem e o tempo nem existe.
Eu queria gastar meus últimos minutos com coisas mais brandas. Que não queimassem o coração da gente assim, até carbonizar. Minutos finais pra desenterrar uma coragem e te dizer qualquer coisa como escuta aqui, menino, como é bom ter você e etc. Como você é importante sabe como é meu amor. Como eu penso e repenso em você até dormir, penso tanto que nos sonhos você chega a aparecer. Me engasgaria até conseguir dizer, devagarinho: Menino-como-eu-quero-cuidar-de-você.
Mas eu não disse. Eu nunca disse. Porque estou sempre perdida demais na minha confusão, num furacão de más resoluções arrastadas por meses e anos e dores que eu não poderia jamais te afogar nesse caos. E então me afogo sozinha. Vivo me machucando pela vida, joelhos e queixo ralados. Vez em sempre machuco os outros também, sou desastrada e inábil em segurar culpas. Pra não ferir, eu fujo. Juro, é inútil, mas eu continuo correndo. Correndo, correndo. Eu teria tantas coisas pra te dizer, pensando bem, muitas mesmo. Mas eu não poderia dizer... e era porque eu tinha medo. Saco. Um puta medo. Um medo só meu e bem escondido. Às vezes ele aparecia sim, é verdade. Você via, eu te abraçava, os olhos escorriam tal qual torneiras abertas, era medo. Não medo de morrer, não não, antes fosse: era medo de viver. A vida é um risco e está sempre por um fio. Eu tinha medo de perder. Medo de me perder. Medo de perder você com o que quer que eu dissesse. Que numa palavra ou outra esse fio transparente e frágil que nós nos equilibrávamos com um pé só arrebentasse. E eu nada disse - e te perdi.
Acho que no fundo desse copo cheio de cachaça barata que eu chamo de coração, eu queria que você me botasse sentada no seu colo e dissesse cheio de razão um grande NÃO, instituísse de uma vez por todas a lei que eu preciso, você não vai fugir, e ponto, rompesse com as minhas repetições, a mania de estragar tudo, a minha compulsão de tacar vasos no chão pra depois contar os cacos. E agora um abraço e ficamos aqui, para sempre. Vivendo num mundinho sem partidas, sem fugas, sem medos. Aqui pra sempre. Pra sempríssimo.
Mas houve a fuga.
E houve o medo.
E do peso da diferença, criou-se o hiato da incompreensão.
O rádio desligou, e agora? Agora faz frio aqui dentro.
Eu gosto tanto-tanto de você, que te deixei partir.

domingo, 29 de maio de 2011

desconexão


Dorme menina, o sono também salva, ou adia. (CFA)



A insônia e o choro.

A falta de ar e a tosse.
Coração disparado.
O estômago revira,
a cabeça lateja,
grito abafado pelo travesseiro.
Ninguém escuta.

...

Aspirina e outras drogas pra dor existencial são placebo, menina. A ferida é sempre mais embaixo. É sempre ali, mais no fundinho da constituição do ser, nas vísceras, no ponto em que se relar, sangra – e sangra até a última gota. Naquela noite teve febre. Acordou algumas vezes de pesadelos confusos com abismos e fugas, que enquanto fugia, caía, que se levantava e corria, caía uma, duas, três vezes e depois perdia as contas e acordava com gosto de terra na boca, sentia entre os dentes os graoszinhos dissolvendo na língua. Suava colada ao cobertor molhado, tiritando, dentes batendo, o frio cortando, cabelos molhados, face encharcada. De mau a pior: tossia. Com força, o peito chiava, comprimido. Garganta machucada pela tosse perigava sangrar, da essência já vertia sangue. E as vísceras extirpadas. Cara inchada, olho pregado. Abriu os olhos, teto rodava. Nada dá jeito. Nem ninguém, nem ninguém. Levantou a cabeça do travesseiro ensopado, fechou os olhos e sentiu o mundo girar. Andou cambaleando, tropeçando nas pernas. Era porre sim, mas pior que porre de álcool, coquetel de psicotrópicos ou sei lá, é porre de tristeza. Daqueles que você acorda tão-tão fodido que só deseja que o fim do mundo já tenha começado quando você abrir a janela pra fumar aquele último cigarro amassado que sobrou perdido no fundo da bolsa. Janela fechada. Porta trancada. E chave por dentro. Com as unhas vermelhas descascadas e roídas até o sabugo, se garrou nas paredes e trançando as pernas foi até o banheiro. A cara refletida no espelho doía. Era triste e doía. Era jovem, perdida, decepcionante e (se) doía. E como proceder diferente? Como não ser daqueles bichos que ninguém adestra? Doía e não era a primeira vez. (Me domestiquem! Me domestiquem! Gritava. Gritava tanto.) Não seria também a última, sabia – e gritava mais. Pasta na escova, escova na boca, tosse de novo e de novo, tossindo abaixa a cabeça contra a pia enquanto segura a torneira e deixa a escova cair, perde o ar, tosse e é o choro que volta, escova na garganta e o enjôo. Chão frio no rosto.
Bom dia. Mas muito bom dia para você.  

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Tudo bem

Lembra daquela mania que você tinha de só saber desabafar fazendo teatro? Daqueles de jogar as coisas todas no chão e gritar não quero mais, não quero mais, nunca, nunca. Entre cartas, pensamentos, obsessões, afetos, desconstruções, cortes e arranhões, fantasias, cansaço, estupidez, queimaduras, lágrimas – tudo no chão, quebrado em mil pedacinhos de coração partido.
E depois? Depois deitar na cama, chorar três dias, morrer várias e várias vezes - exaustivamente. E daí então levantar, se lamentar da própria decadência, reclamar da própria cara como auto-punição por ser tão tola-excessiva-e-infantil, correr, cair de joelhos e dar de rosto no chão, juntando os cacos todos... pra depois, tudo de novo, tudo de novo. Eu não sei se você sofre, menina, mas eu sei que você é atriz. Das boas.
Então com aquele ar embaraçado de quem é pego em flagrante no pecado mais pecaminoso, você se defende, faz manha e cara de injustiçada. Toda determinada me diz: - porque à tristeza não é necessário nomear, baby. Sabe como é. Ela chega sem avisar, não bate à porta, entra esbarrando nos teus suvenirs ganhados que estavam em cima da mesa, arregaça a porta da tua geladeira, bebe as tuas cervejas, põe o pé no teu sofá e muda o canal da tua TV enquanto você assistia ao último episódio da tua novela preferida e a você resta só o papel do bom anfitrião.
Tenho me sentido particularmente triste no momento em que acordo. Não sei, quando a gente dorme não há chance de esquiva, e daí olha, Morfeu me põe de cara com todos os pesadelos que acordada eu faço de conta que nem estão ali. Ou melhor, que nunca estiveram. Ando em total negação de história pessoal. Mas olha, eu considero essa do Morfeu extremamente cruel, me obrigar a lutar contra dois mil anos de mágoas e desesperos assim, tão sem possibilidades de defesa. Por sorte, ultimamente meus sonhos tem sido acometidos de um recalcamento quase que imediato. Lembro por dois segundos e num terceiro momento... pufff! Esvaem-se os fantasmas.
Mas... (e ela sempre tinha um mas, contudo, no entanto, entretanto, porém, todavia – qualquer conjunção coordenativa adversativa - dentro da manga), o que é que a gente faz com a angústia do recalcado, cara? - Sei lá, menina. Sublima. Faz uma poesia música escultura em argila artesanato receita de bolo obra-de-arte. Faz arte! Uma loucura, besteira, uma bobagem bem grande e tanto faz, tanto faz. Vai levando, de angústia em angústia constroem-se monumentos faraônicos, meu amor e você, você bem merecia uma pirâmide só pra essa sua alma boba.
E então você me abraça sorrindo como quem acaba de ganhar a tal pirâmide, como quem toca a tristeza à vassouradas pra fora de casa. E eu sorrio de volta, já sabendo que quando eu virar as costas, lá vai você encenar o ato II: menina abraça a sua tristeza de novo - mas eu sorrio de volta mesmo assim, e abraço com todo o carinho de quem te solucionou das suas crises existenciais-afetivas, mesmo sabendo que em breve estarei eu pensando no que você merece agora, se é o Grand Canyon, torre Eiffel ou os jardins suspensos da Babilônia, e daí você vai me sorrir e tudo de novo, tudo de novo e tudo bem. Pelo seu sorriso lindo, bobo e instantâneo de propaganda de pasta de dente e pela minha onipotência-barra-simulacro e possibilidade de te dar o mundo inteiro embrulhado pra presente – tudo bem.  

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Alô, alô, Realengo, aquele abraço!

(vamos falar do que interessa...)


Um amigo chegou a mim outro dia desses, interessado em saber minha opinião (obviamente, de quase profissional) sobre o caso Wellington, tão em pauta, mas cujo conteúdo não domino muito bem por pura falta de TV. O que sei é que como todo o resto do país, tive abalados os meus pilares internos. Mexeu na estrutura. A coisa toda se atormentou e a minha pouca reflexão acerca do assunto talvez fosse só a tentativa falha de estabilização, de conseguir reaver a ordem em meio a desorganização que se instalava.
No momento da pergunta, milhões de coisas me vieram à mente. O comportamento primeiro de pseudo-psicóloga em formação foi sem surpresa: let's go diagnosticar o guri. Juntando os caquinhos disseminados incansavelmente pela mídia, fica fácil fazer um laudo: F20.0 - esquizofrenia paranóide, segundo a CID-10, bíblia de (quase) todo psi. Rá! Como se tudo isso fizesse alguma diferença. Wellington está morto. Dizem que enfiou uma bala na cabeça e se juntou às outras 12 crianças que tinham entre 12 e 14 anos. Aí eu me liguei. São meras tentativas de explicação. Explicações que não explicam. Projeções em problemas de segurança, educacionais, e o caos da saúde pública mostrando suas reverberações nos olhos arregalados de todos nós.
São tentativas pouco eficazes de nomeação, porque o inomeável angustia, inquieta. É angustiante olhar o disforme, inconcebível, inaceitável – como lidar com o desconhecido? Não sei. O desconhecido assombra, em especial quando se levanta gigantesco diante de nossas interdições mais primárias, ali tão bem protegidinhas por um superego eficaz: não matarás, meu filho. Muito menos farás uma chacina. Muito menos ainda fuzilarás a sangue frio. Muito, mas muito menos, farás isso tudo com crianças.
Ouvi dizer por aí, vindo de pessoas negras, brancas, amarelas, ricas e pobres, sei lá, que o guri era cruel, assassino mesmo, daqueles loucos sem cura que deveria morrer sim, que para ele não haveria perdão e que a viagem para o inferno era com passagem só de ida. Seguinte, amigos, se você, assim como eu, acredita em um Deus com “d” maiúsculo (serve o “d” minúsculo, também), a parada é que esse Deus está com as duas mãos tapando os ouvidos quando ouve tanto blá blá blá sobre esse assunto. No meu parecer diagnóstico, se ele existisse, eu possivelmente escreveria que Wellington foi tão vítima quanto as crianças que matou, e daí assinaria embaixo meu nome completo, sem abreviações.
Wellington Menezes de Oliveira, esquizofrênico paranóide ou com qualquer outra pouco importante nomenclatura psiquiátrica pela precariedade do que explica (nota-se: a palavra é explica - e não classifica), foi, antes de tudo, carne e osso, humano como eu e você – e sofreu.
Adotado, pobre e negro, Wellington recebeu balas na cabeça de uma sociedade extremamente individualista, elitista e de preconceitos velados. Balas simbólicas que vão matando aos pouquinhos. Wellington, vítima social, extirpado de seus direitos enquanto pertencente à humanidade, como tantos outros brasileiros que vejo todos os dias, pessoas como eu e você. Não planejo cair nos braços do discurso da vitimização do sujeito que é tão usurpador quanto culpabilizá-lo. Apenas acho acrítico desconsiderar os fatos e fatores que perpassam a história e vida de Wellington, pois tampouco estou interessada em cair nas graças da alienação.
Os meios de comunicação se encarregam de repetir o assunto vinte e cinco vezes por dia, só para ninguém esquecer e não perder o acontecimento. Muito de ibope, também, mas essa é outra questão. O negócio, agora, é que a gente assiste, re-assiste e assiste de novo, loucos em busca de elaboração, desvairados por dados, mínimos que sejam, que nos dêem alguma migalha de conforto. E não achamos, porque a abrangência do caso fica resumida a repetições pouco elaboradas, pela pobreza de reflexão.
A escola foi o cenário da matança – e não foi por acaso. Wellington sofreu bullying, foi rejeitado e objeto de escárnio e violência deliberada, o que é capaz de transformar até a casa da vó em um ambiente extremamente aversivo e hostil. No palco de guerra, Wellington resolveu assumir o papel de senhor das armas. E atuou. (Também não quero divagar por determinismos, nem todas as pessoas que sofrem/sofreram/sofrerão bullying cometerão assassinatos em massa, são apenas pontos a, quem sabe, considerar em nossas análises).
Jamais poderei, mesmo usando de toda a minha imaginação, conceber os sofrimentos psíquicos que puderam ser preponderantes na ação primitiva de Wellington. Digo primitiva pois a vejo como presente desde que o primeiro homem é homem: legítima defesa. Que fazer com uma dose insuportável de pulsões agressivas? Projetá-las no outro, nos outros ou no meio, é claro. Tão óbvio quanto arcaico. Posso apenas hipotetizar (e muito superficialmente) o que Wellington viveu ou não viveu desde o seu abandono pelos pais biológicos, sua adoção e como foi para ele tal experiência (assumindo-o enquanto indivíduo único e que experienciará suas vivências de uma maneira singular, conforme o permitido por suas particularidades psíquicas) chegando até a morte de sua mãe adotiva, talvez figura que correspondia ao seu ego de amparo, que atuava enquanto sustentação de sua frágil organização egóica que oscilava entre realidade e delírio nas incessantes buscas de amenizar angústias psicóticas de aniquilamento.
Estranhamente, só consegui algum conforto quando aceitei que é minha a culpa pelo sangue que manchou para sempre a escola de Realengo. A culpa me pertence. Pertence a nós. Assim como a dor e a perda de 13 famílias são por nós compartilhadas (e aqui incluo Wellington, se é que existe alguém por ele...).
Wellington matou e morreu deixando sua denúncia engasgada, cega de ódio e impossibilitada de extravasamento sensato, Wellington revelou a grande fragilidade de nossos sistemas educacional e de saúde, despreparados, falhos e insensíveis à percepção do sofrimento alheio. Professores e diretores não enxergaram os abusos que foram praticados com Wellington? A quem compete essa responsabilidade? O psicólogo pelo qual Wellington passou, há algum tempo, foi negligente ou suficientemente débil em sua formação para ser ludibriado? Quantos mais morrerão por falhas nossas? Quantas pessoas mais vivem o mesmo ou semelhante grau de desamparo de Wellington? Qual nossa capacidade de empatia para com o que sofre?
O que está feito, está feito. A crítica crua e selvagem em Realengo já deixou expostas nossas feridas narcísicas de fragilidade e de finitude, nosso desamparo social, nossa solidão coletiva. Wellington morreu, mas nos deixou o susto enquanto dormíamos. O que nos cabe, agora, é acordar.  

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

coração na roda-gigante

"[...] porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem [...]" (CFA)




Eu escreveria apenas três ou quatro palavras desconexas se assim pudesse, mas esse coração é tão teimoso, custa a deixar que algumas poucas palavras revelem o que tenho escondido. Coração engasgado. Coração mudo. Fita isolante na boca do coração. E o grito acuado.
Mas eu não o culpo, escute: não te culpo, meu coração, eu compreendo que, como qualquer outro, você tem lá suas complicações, remendos e pulsões. Não culpo não, é verdade, mas te guardaria com todo carinho num lugar no qual eu não mais te achasse, coração, porque as suas batidas soam tristes, baixinhas e tristíssimas, tristíssimas num chorinho bem choradinho de violão faltando cordas. Coração asfixiado por um travesseiro enquanto dorme.
Corre uma brisa fria no rosto, correm crianças e inquietações, e como riem essas crianças inquietas! Fui criança. E, sendo criança, um dia eu também ri sem qualquer motivo evidente, ri só por rir, para mostrar os dentes em falta que mais tarde cresceriam meio tortos. Faz tempo. Tempo, tanto tempo. A criança que fomos, onde andará agora? Já tem dentes? Como sobreviverá nesse mundo sem dentes?
Eu não quis crescer. Não quis deixar a criança ir vaguear sem rumo, pois era criança pequena, poderia se perder. Tinha medo pela criança que sem dentes estava indefesa. Tinha alguns, mas eram frágeis, dentes-de-leite. Me neguei a enxergar os primeiros pêlos na cara por essas ilusões infantis que se tem e pelas quais se teima. A criança gritou assustada por algum tempo, até perceber que era inútil tentar: o tempo passava e passava e passava e dos pêlos vieram as quedas e das quedas vieram as marcas e das marcas as rugas. Ai, os super heróis são os que mais machucam quando vão. Foram todos. Todos sem exceções. Os dentes-de-leite bambeariam, cairiam, deixariam a boca com gosto de sangue. E assim foi.
Os cavalinhos de madeira giram sincronizados. Vi-me cavalinho de madeira, petrificado que estou (ou sou?), mas o carrossel no qual existo já não funciona mais. Resistindo a sóis e chuvas, hoje é quase só ferrugem pelo chão. Coração cavalo de madeira com uma pata quebrada e sem dentes, preso no carrossel de ferrugem.
Coração mutante, bolha de sabão, roda-gigante. Quero um epitáfio mal escrito num saquinho de pipoca. Luzes coloridas piscando, vertigem, luzes, vertigem, crianças mortas, incontáveis desesperados iluminantes que súbita vontade de sair correndo com o coração na mão e ir rodar na lua, no ponto mais alto da roda-gigante. Não quis deixar a criança se afogar e morrer. Mas morreu.
Roda, roda-gigante, roda seus amantes e os beijos com gosto de algodão-doce, maçã-do-amor, um Éden e a equação da circunferência que eu nunca aprendi, focos brilhantes e olhos de serpente. Percebe? Tem sempre uma maçã vermelha na boca, um pecado bem doce para gente de alma bem amarga. Nunca resistimos. Não poderíamos jamais, pois éramos amargos e nos espancávamos por qualquer doçura que nos fosse oferecida. Tínhamos fome da vida que nos escapava entre os dentes-de-leite. Há tanta pureza que me sinto cintilar branco e crucificado entre as arestas da roda-gigante, translúcidas faces essas que habitam a roda de todos os condenados. Coração na roda-gigante. Era vida ou morte. Comigo sempre foi assim. E morremos. Coração-rei, coroa de espinhos, despido e crucificado com o peso de todos os pecados da humanidade. Pai, por que me abandonastes? Coração surdo. Nenhuma resposta.
Em um silêncio culpado de quem morde a maçã eu imploro para que a roda-gigante não pare. Rode, oh, grande Éden, gire com suas proibições e fomes de maçãs apodrecidas pelo chão, faça-me ficar entorpecido com as muitas cores e vertigens desse paraíso infernal, pois meu velho coração há tanto tempo só se alimenta de fingimentos e ilusões de todas as espécies de serpentes, num eterno pretender de risos e até de dores, nas tentativas de bater é que morremos ali mesmo, coração, entre as maçãs e as crianças mortas.
Vida fugaz, infância breve, a criança afogada flutuando na água. Como no minuto breve que há entre o agora-paraíso e o estender do braço, pegar e morder a maçã, bem diante dos meus olhos, a vida vai e vem, vai e vem, vai e...
Pega-pega, pic-esconde,
num momento todos somem.
[...]
Coração trem-fantasma.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

nas leituras de antes de dormir...

...tem sempre um Caio F. dando beijo de boa noite.  

"[...] Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tudo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto."

Caio Fernando Abreu - trecho de "Inventário do ir-remediável".