sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Sobre ciladas, mendigos, sarjeta e superbonder

Durante algum tempo eu achei admirável essa história de amor. Sabe? Desses amores de cinema aos domingos, mãos dadas, vestido florido, ansiedades e flores nos olhos. Eu até acreditei que fossem verdades essas conversas que ouvi no rádio. Foi então que aos poucos e sorrateiramente, você sabe, isso quer dizer que foi sem que eu me desse conta, fui me tornando, também, uma descrente. Tudo bem, talvez não tenha sido tão sorrateiramente assim, a gente não dorme crente e acorda cético, não dorme apaixonado e acorda indiferente: não, não, a gente vai se unindo às ciladas da vida, do mundo, dos outros, até se tornar a própria cilada. Eu, cilada. Não se mete comigo, meu caro, porque parafraseando o Drummond, quando eu nasci um anjo torto, desses que vive no caos, veio e me falou: e serás cilada, minha filha, ci-la-da.
Andei pensando nessas confusões de amor. Nesses extremos crimes passionais e pessoas para sempre perdidas, nesses corações para sempre partidos sem superbonder, nesses amigos para sempre sumidos um em cada canto, sozinhos-sozinhos enlouquecendo à caça de outros amigos, na tal da alteridade e amor ao próximo para sempre esquecidos no bar da esquina, no mendigo bêbado e jogado na sarjeta que... tem mendigos aqui nessa cidade, meu amigo? Não ouvi resposta.
Rolei de um lado para o outro da cama. Foi terrível passar uma noite inteira pensando em amor. Terrível, terrível. Amor não foi feito para ficar pensando sobre, porque se você pensa em cima do amor... já era, meu amigo, perde todo o irracional a ele inerente, deturpa a ideia, estupra a essência e os resultados são desastrosos: você se torna, também, uma cilada. Uma cilada de descrença. Cilada para o coração do outro, compreende? Para o outro que ainda não saiu por aí com uma metralhadora de racionalizações mirando nos sentimentos humanos, que ainda mantem os sonhos guardados para que nenhuma pessoa cilada, como eu e você, destrua tudo e o pobre acabe cilada como nós. Cresce o número de pessoas-cilada, deu no jornal (ou na tv, não lembro agora).
Como eu ia dizendo, eu nem sempre fui cilada, aconteceu depois, embora o anjo já tivesse previsto. Não há o menor sentido em revelar aqui, onde, como e quando eu adentrei ao grupo dos cilada. Eu também não sei. Deve ter sido depois dos amigos que se foram, dos amores que morreram, dos mendigos que eu não vi, das grandes coisas que não deveriam ir, mas vão – e não voltam mais. Para a nossa nostalgia de quase todo santo dia, restam só as lembranças já meio borradas de tempo passado, amareladas feito fotografias velhas num álbum que se perdeu.
E eu só fiquei aqui, parada. Assistindo as coisas acontecerem comendo pipoca sem sal. Porque eu tinha tanto tanto medo de não encontrar, tinha tanta tanta fome de um não sei quê, tanto tanto medo de me perder, porque nós tínhamos tanto tanto medo de cair, ralar o joelho e chorar, porque a mãe advertiu que ''lá fora'' tinha tanta gente cilada, mas eu não ouvi apesar do medo, e da fome, e do joelho ralado – e foi aí que eu chorei. Ai, doeu por noites e noites meu coração quebrado sem superbonder aqui nesse quarto onde eu sozinha-sozinha inutilmente tentava encontrar amigos no escuro.
Porque sim porque não porque talvez porque não sei porque tem tanta gente no mundo tanta gente cilada nos arrancando pedaços da carne com as unhas e as minhas unhas não eram grandes e me arranhavam e me arranharam e me arrancaram partes para saciar fomes insaciáveis que não eram de carne ou sangue e agora eu vejo as minhas grandes unhas postiças e às vezes eu me machuco com elas porque meu Deus depois de tanto me debater sobre o mundo e dizer que não, não, que eu não queria desacreditar, que eu precisava continuar acreditando nessa sujeira toda que se chama eu o outro e todos nós sem exceções, foi que o mundo me mostrou os tantos mendigos andando pelas ruas de vestidinhos floridos, de tênis e meia, de camisa e gravata, de calça jeans, não mais jogados nas sarjetas de pedra e concreto, mas nessas sarjetas que a gente esconde dentro da cabeça e mascara com a neurose e o sorriso e a maquiagem e uma boa esteticista.
E com uma metade do brinquedo quebrado em cada mão a gente só sente o nó começar a tomar conta da garganta, inspira/expira, engole seco, encontra um ponto fixo e olha firme, diz que tanto faz, que afinal não era tão legal assim, que não tinha importância e que o natal está sempre aí, de qualquer forma e que na pior das hipóteses ganha-se um brinquedo igual – ou até melhor, quem é que sabe?
Estou inexoravelmente envolvida nesse lixo todo, nessa confusão, me equilibrando para não cair com a cara no charco, você me compreende? Parada de novo, em meio ao trânsito engarrafado de mendigos brancos, negros, altos, baixos, loiros com ou sem lente de contato, com ou sem as roupas da moda, com ou sem maletas e bolsas e aparelhos celulares e cigarros e drogas nas mãos, foi que eu quis sentar na sarjeta. Sentei e vi mais claro, faz um céu azul pra esses mendigos cinza. A surpresa ao ver mais de perto foi perceber que a sarjeta já estava em mim. E fazia um tempo. A sarjeta foi ganhando valor e influência, fui me amoldando à cara da sarjeta.
E tudo o que você faz, pensa, age, sente, representa expõe mais e mais e ao máximo nível toda a tua miséria humana decadência lixo patifaria, esse teu grande lado sujo, as tuas muitas caras de maquiagem escorrida quase até o queixo da máscara, esse buraco negro e cheio de vermes e bichos rastejantes que você se tornou ou que talvez você sempre foi, embora as pessoas não enxergassem a tua pobreza de mendigo por misericórdia, amor, compaixão, cristianismo, pura insensatez, qualquer coisa do gênero. E porque eu também sou transbordante em misericórdia amor compaixão cristianismo com validade vencida e insensatez, pura e muita insensatez e mesmo assim não te suportei vomitei cuspi rejeitei teimei em não aceitar as tuas artimanhas, armadilhas, inverdades, ci-la-das e empurrei o prato com toda a força da minha fobia a vermes, bichos rastejantes e almas pela metade.
Acabou o superbonder do mundo, meu amigo. Estou na sarjeta e sem rumo e não quero nenhum mendigo que me dê a mão e me mostre caminhos. Não quero essas unhas grandes e famintas me ferindo até o osso. Me encrespei numa casca de orgulho que se cutucar sangra: agora sou cilada.

2 comentários:

Anônimo disse...

FIRST!!!!!!!

GASPAR disse...

Cara Amiga Thamy
Classificação morfossintática:
- [sarjeta] substantivo FEM singular .
Sinônimos: decadência humilhado valeta .
Palavras relacionadas: ferrado lascado fudido escoadouro .

MAIS COMO DIZ OSCAR WILDE
"Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. "

ADORO SER SEU AMIGO MESMO QUE DE VEZ EM QUANDO.