quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

soco no estômago

Nossa história é história mal contada. Daquelas histórias que já começam de pernas para o ar e em meio à bagunça, poeira, traças, caos e móveis usados. Uma dessas histórias sem glamour, baby, cheia de engasgos, batom borrado, rímel escorrido, cabelos desgrenhados, barba há uma semana por fazer. É filme do avesso que casalzinho nenhum dá beijo depois dos créditos, sem era-uma-vez e sem essa de foram-felizes-para-sempre, sem essa: era realidade crua, carnificina estampada no teatro da vida real, realidade cuspida.
E nessas histórias de vida real todos amam errado, e por isso nós também amávamos errado, como quase todo mundo, mas amávamos muito, como só os poucos loucos de pedra podem amar. Na verdade, a loucura maior reside no fato de que já sabíamos que seria assim quando o jogo começou, e mesmo assim jogamos. De corpo e alma, jogamos – mas sem fé. Apaixonados é que fomos à luta. Loucos.
Acho extremamente complicado que se jogue sem fé (mas jogamos) porque a fé é o que dá força – e portanto, jogamos sem força. Pirados. Só cegos em meio ao tiroteio. Éramos fracos, resumindo. Mas jogamos pelo tal amor (e suas complicações) e não que tenha valido a pena, longe disso, éramos apenas loucos amarrados à camisa de força lutando desesperadamente por escapar de um hospício em chamas que só existia no nosso delírio.
Melhor dizendo, não foi jogo, foi pior: foi uma aposta na qual se deixou a vida toda a Deus dará. E deu no que deu: três anos de terapia (de duas a três vezes por semana), noites sem dormir e olhos secos (quase todo dia da mês), coquetéis de valium, rivotril, prozac (brindes diários e em sua homenagem), pensamentos de união entre objetos cortantes e os pulsos (dia sim, dia não...). Fracasso (sempre, sempre). Três socos no estômago, fiquei sem ar. Murro em ponta de faca machuca, mon amour – eis a lição que não aprendi. E que nunca aprendo.
I never learn, baby, então eu digo: te quero. Eu te amo. Eu te amo tanto tanto tanto, chega a doer, baby. Bate, dói, sai um bocado de sangue. É babaquice, carência, teimosia, apego, masoquismo, fetiche, melancolia, hábito, pátio vazio, fantasias inconscientes. Não, cara, é só loucura. Amor é só loucura, Freud não explica – e dói, eu repito.
Bebendo da fonte da insanidade até sentir a ânsia e o enjoo, até perder as noções existenciais entre eu-e-o-outro para que se permita a despersonalização. Afogar o próprio ego até a morte para que se aceite correr o risco da aniquilação ao dizer as-três-palavrinhas-mágicas-soco-no-estômago: EU TE AMO. Não contente, via de regra segue-se com: preciso de você (como preciso de água e ar), cuida de mim (implorando como criança assustada), porque meu coração é seu (concluindo a surra). O soco no estômago para que não se perceba o risco que é entregar o coração na mão de outra pessoa e dizer ''cuida''. E olha que seu coração pode nem ser cuidado direito, então cuidado, cara. Porque pode ser que seu coração vire enfeite de estante, quadro no canto da sala, suporte de lata de lixo, peso de porta ou de papel. Tudo aquilo que não vale meio centavo, e você sabe que coração não suporta (ou não deveria suportar) ser insignificante.
Por isso eu digo, eu cuido de você, se você voltar, se vier me visitar numa tarde de sábado, talvez domingo, talvez de primavera, mas pode ser de inverno também. E que então, sendo minha criancinha assustada, você peça com todo carinho, bem baixinho e ao pé do ouvido, cuida-de-mim.
É nesse momento que eu entro de novo no jogo (sem fé e sem saber jogar), e faço uma dessas apostas altas que não posso pagar com a miséria de coração no peito que me restou, te conto sobre objetos cortantes e pulsos, coquetéis, segredos e mentiras que contei na terapia, e mais, te digo que a realidade sem você é crua e nua e machuca mais que soco no estômago, baby e que você pode seguir as tuas estrelas, a tua estrada que já tem destino certo e traçado, tudo mi-li-me-tri-ca-men-te calculado e feito pra dar certo, pra não correr os riscos que há entre o viver e morrer, você pode sim. Ou pode vir comigo pelo meu caminho enlameado e sem futuro que vai de incerteza em incerteza, conforme a correnteza, mas que tem mãos dadas e uma lua bem bonita que pode até ser sua se você quiser. Vem comigo, sim? Porque num desses desviar de olhos mãos pulsar de coração - natural e infelizmente - a gente se perde, baby e é pra todo o sempre.
Fica comigo, eu disse, que eu te cuido com todo cuidado do mundo de quem cuida de porcelana chinesa, pergaminho hebraico, peça de museu. Fica comigo porque te amo e te preciso como a tua lua precisa do céu pra continuar sendo lua. Meu céu.
Você. Lua. Eu. Meu. Sua. Minha. Céu. Seu - E soco no estômago.

Um comentário:

Observador disse...

Nossa meu ... esses seus textos estão ficando cada vez mais pessoais , estou sentindo constrangido de ler , mais não resisto, abraços sou de São paulo.
http://qualquernotaserve.blogs.sapo.pt/