quinta-feira, 14 de abril de 2011

Alô, alô, Realengo, aquele abraço!

(vamos falar do que interessa...)


Um amigo chegou a mim outro dia desses, interessado em saber minha opinião (obviamente, de quase profissional) sobre o caso Wellington, tão em pauta, mas cujo conteúdo não domino muito bem por pura falta de TV. O que sei é que como todo o resto do país, tive abalados os meus pilares internos. Mexeu na estrutura. A coisa toda se atormentou e a minha pouca reflexão acerca do assunto talvez fosse só a tentativa falha de estabilização, de conseguir reaver a ordem em meio a desorganização que se instalava.
No momento da pergunta, milhões de coisas me vieram à mente. O comportamento primeiro de pseudo-psicóloga em formação foi sem surpresa: let's go diagnosticar o guri. Juntando os caquinhos disseminados incansavelmente pela mídia, fica fácil fazer um laudo: F20.0 - esquizofrenia paranóide, segundo a CID-10, bíblia de (quase) todo psi. Rá! Como se tudo isso fizesse alguma diferença. Wellington está morto. Dizem que enfiou uma bala na cabeça e se juntou às outras 12 crianças que tinham entre 12 e 14 anos. Aí eu me liguei. São meras tentativas de explicação. Explicações que não explicam. Projeções em problemas de segurança, educacionais, e o caos da saúde pública mostrando suas reverberações nos olhos arregalados de todos nós.
São tentativas pouco eficazes de nomeação, porque o inomeável angustia, inquieta. É angustiante olhar o disforme, inconcebível, inaceitável – como lidar com o desconhecido? Não sei. O desconhecido assombra, em especial quando se levanta gigantesco diante de nossas interdições mais primárias, ali tão bem protegidinhas por um superego eficaz: não matarás, meu filho. Muito menos farás uma chacina. Muito menos ainda fuzilarás a sangue frio. Muito, mas muito menos, farás isso tudo com crianças.
Ouvi dizer por aí, vindo de pessoas negras, brancas, amarelas, ricas e pobres, sei lá, que o guri era cruel, assassino mesmo, daqueles loucos sem cura que deveria morrer sim, que para ele não haveria perdão e que a viagem para o inferno era com passagem só de ida. Seguinte, amigos, se você, assim como eu, acredita em um Deus com “d” maiúsculo (serve o “d” minúsculo, também), a parada é que esse Deus está com as duas mãos tapando os ouvidos quando ouve tanto blá blá blá sobre esse assunto. No meu parecer diagnóstico, se ele existisse, eu possivelmente escreveria que Wellington foi tão vítima quanto as crianças que matou, e daí assinaria embaixo meu nome completo, sem abreviações.
Wellington Menezes de Oliveira, esquizofrênico paranóide ou com qualquer outra pouco importante nomenclatura psiquiátrica pela precariedade do que explica (nota-se: a palavra é explica - e não classifica), foi, antes de tudo, carne e osso, humano como eu e você – e sofreu.
Adotado, pobre e negro, Wellington recebeu balas na cabeça de uma sociedade extremamente individualista, elitista e de preconceitos velados. Balas simbólicas que vão matando aos pouquinhos. Wellington, vítima social, extirpado de seus direitos enquanto pertencente à humanidade, como tantos outros brasileiros que vejo todos os dias, pessoas como eu e você. Não planejo cair nos braços do discurso da vitimização do sujeito que é tão usurpador quanto culpabilizá-lo. Apenas acho acrítico desconsiderar os fatos e fatores que perpassam a história e vida de Wellington, pois tampouco estou interessada em cair nas graças da alienação.
Os meios de comunicação se encarregam de repetir o assunto vinte e cinco vezes por dia, só para ninguém esquecer e não perder o acontecimento. Muito de ibope, também, mas essa é outra questão. O negócio, agora, é que a gente assiste, re-assiste e assiste de novo, loucos em busca de elaboração, desvairados por dados, mínimos que sejam, que nos dêem alguma migalha de conforto. E não achamos, porque a abrangência do caso fica resumida a repetições pouco elaboradas, pela pobreza de reflexão.
A escola foi o cenário da matança – e não foi por acaso. Wellington sofreu bullying, foi rejeitado e objeto de escárnio e violência deliberada, o que é capaz de transformar até a casa da vó em um ambiente extremamente aversivo e hostil. No palco de guerra, Wellington resolveu assumir o papel de senhor das armas. E atuou. (Também não quero divagar por determinismos, nem todas as pessoas que sofrem/sofreram/sofrerão bullying cometerão assassinatos em massa, são apenas pontos a, quem sabe, considerar em nossas análises).
Jamais poderei, mesmo usando de toda a minha imaginação, conceber os sofrimentos psíquicos que puderam ser preponderantes na ação primitiva de Wellington. Digo primitiva pois a vejo como presente desde que o primeiro homem é homem: legítima defesa. Que fazer com uma dose insuportável de pulsões agressivas? Projetá-las no outro, nos outros ou no meio, é claro. Tão óbvio quanto arcaico. Posso apenas hipotetizar (e muito superficialmente) o que Wellington viveu ou não viveu desde o seu abandono pelos pais biológicos, sua adoção e como foi para ele tal experiência (assumindo-o enquanto indivíduo único e que experienciará suas vivências de uma maneira singular, conforme o permitido por suas particularidades psíquicas) chegando até a morte de sua mãe adotiva, talvez figura que correspondia ao seu ego de amparo, que atuava enquanto sustentação de sua frágil organização egóica que oscilava entre realidade e delírio nas incessantes buscas de amenizar angústias psicóticas de aniquilamento.
Estranhamente, só consegui algum conforto quando aceitei que é minha a culpa pelo sangue que manchou para sempre a escola de Realengo. A culpa me pertence. Pertence a nós. Assim como a dor e a perda de 13 famílias são por nós compartilhadas (e aqui incluo Wellington, se é que existe alguém por ele...).
Wellington matou e morreu deixando sua denúncia engasgada, cega de ódio e impossibilitada de extravasamento sensato, Wellington revelou a grande fragilidade de nossos sistemas educacional e de saúde, despreparados, falhos e insensíveis à percepção do sofrimento alheio. Professores e diretores não enxergaram os abusos que foram praticados com Wellington? A quem compete essa responsabilidade? O psicólogo pelo qual Wellington passou, há algum tempo, foi negligente ou suficientemente débil em sua formação para ser ludibriado? Quantos mais morrerão por falhas nossas? Quantas pessoas mais vivem o mesmo ou semelhante grau de desamparo de Wellington? Qual nossa capacidade de empatia para com o que sofre?
O que está feito, está feito. A crítica crua e selvagem em Realengo já deixou expostas nossas feridas narcísicas de fragilidade e de finitude, nosso desamparo social, nossa solidão coletiva. Wellington morreu, mas nos deixou o susto enquanto dormíamos. O que nos cabe, agora, é acordar.