domingo, 30 de janeiro de 2011

é puro (des)amor, meu bem

Eu deveria escrever sobre você, rapaz. Sim, por que não? É bom que se escreva sobre coisas bonitas, porque tem tanta coisa feia no meu mundo, no nosso mundo, no mundo que poderia ser nosso e o que fizemos dele antes que fosse, pichamos todas as paredes, você viu? Vandalizamos, esmagamos com os pés as flores do jardim, não sei se você enxerga a sujeira toda, eu espero que não.
Tão bom seria poder colocar em palavras essas coisas todas que eu sinto e pressinto a seu respeito. São coisas muito boas. Limpas. Claras. Coisas simples. Tão bom seria, meu bem. Mas desconfio que ainda há algo não decodificado no meio disso tudo. E talvez um medo de decodificar. Paro, penso, me reviro: e se do decodificado eu acabar com letras e números piscando me dizendo que agora é tarde demais para voltar atrás?
Acho tudo uma loucura, como já te contei daquela vez. É uma loucura que num dia qualquer de abril, agosto, setembro, outubro, novembro, não sei ao certo - mas era mês interminável de café, lágrimas e oscilações de humor variando entre tristeza e raiva e nada melhor que isso - se encontre de forma tão inexplicavelmente simples uma pessoa que você deseja guardar, talvez numa caixinha para que seja só sua, talvez num amuleto para trazer sorte, talvez debaixo do travesseiro para dar sonhos bonitos.
Te confesso, agora, que toda noite penso em você com tanto carinho, meu bem, com uma doçura que chega a dar uma certa dor de cabeça, às vezes. É engraçado e eu rio porque é doce, num abobamento de endorfina. É muito doce. A cabeça lateja forte pela doçura até que eu pegue no sono. Você é muito doce, mas, quem sabe, você ainda não saiba disso, eu também nunca te disse, mas eu espero um dia poder te dizer meu bem você é tão-tão doce e que você me acredite quando eu disser, é o que peço antes de sentir a última pontada no meio da testa (a última é sempre tão forte que faz dormir profundamente).
Lembra de como nos conhecemos? Foi quase um esbarrão. Penso que talvez, mas só talvez, que naquele dia você estivesse mais perdido que eu. Perdido entre as suas lembranças e porta-retratos do avesso, numa porção dupla de agressividade e culpa deliberada. Acho que sim, bem perdido você estava, não estava? Possivelmente as pessoas perdidas se reconhecem umas as outras - mas nem todas estendem a mão. E você me estendeu a mão sem perceber que estendia a mão para um alguém desconhecido tão ou mais perdido que você. Sem conhecer e sem saber, sem se dar conta foi que a tua mão quente encostou na minha mão fria e da troca de calor veio o suspiro – de alívio, não se está completa e irremediavelmente sozinho então, há aqui uma mão quente – colada a minha mão fria nessa escuridão que delicadamente chamamos de ir-tocando-a-vida.
Acho ainda que, talvez, se você tivesse pensado melhor, ponderado, observado mais de perto, teria mantido as suas mãos dentro dos bolsos da calça, segurando seu jeans surrado com mais determinação para não ceder aos impulsos de pular na água e salvar o afogado, quer dizer, de me estender a mão. E talvez eu não teria se quer te visto passar, teria permanecido tapando os olhos com as minhas duas mãos metidas no rosto, com toda a (in)decisão de quem não sabe e nem quer saber, não quer ouvir, não liga mais. Mas você me apareceu enquanto uma possibilidade de saída do poço enquanto eu te apareci como possibilidade impossível de um amor.
E foi tão corajoso que às cegas você me estendesse a mão quente, meu bem, bem a mim que não tinha calor para te oferecer, só um congelado dentro do peito que, aos trancos e barrancos, ainda pulsava e não se sabia até quando porque no meu poço era difícil respirar e a falta de oxigenação dava umas pontadas na cabeça bem no meio da testa antes do enjôo e subsequente desmaio.
Mas escute: não vamos fantasiar demais, não vamos nos entregar à loucura toda, não. Vamos ter bem claramente que eu sou mais uma no meio da sua coleção de casos mal resolvidos, mas talvez com uma dose maior de ilusão. Talvez. Embora um tanto empoeirada, fico até bonitinha na sua estante. Nos envolveremos sem nos envolver. Só superficial que é para não marcar ninguém. Aqui mesmo da estante vou te amar mais do que sei e depois esquecer seu nome. Você, por favor, meu amor, faça o mesmo. Prove que me ama mais do que tudo me esquecendo ali na próxima esquina, enquanto paga uns trocados a uma garota de minissaia que te faça sentir como um homem. Você tem medo de que, baby? Queimaduras, contusões, uma facada perfurando o fígado? Medo de sair da sua concha de fantasia irrealizável, mas que te traz tranquilidade, a sensação de alma sustentada de acasos e desencontros?
Tenhamos bem claro também que eu não me mostro além do que os seus olhos alcançam do sofá até essa prateleira aqui da estante, mas é porque eu tenho medo. Sou medrosa de dar pena, baby. Tenho um medo de que se me olharem mais fundo não haja nada além de um grande espaço oco, só um buraco com um eco gritando que algo ou alguma coisa essencial a mim já esteve ali – mas não está mais, se perdeu, enfim, e eu não sei nem por onde começar a procurar, meu bem, não sei. É medo de queimadura, contusão, facada no fígado, medo de sangrar até esvair sem me dar conta disso. Medo louco de tentar e não conseguir sentir a faca entrando.
Então com a sua mão quente você me crava entre as costelas a fria lâmina da faca. A lâmina entra até o cabo de madeira quente, e eu não sinto dor. Está tudo, tudo bem, meu bem. Coloco a minha mão fria sobre a ferida quente, o sangue é vermelho vivo. Ajoelho no chão frio e tusso. Escapa sangue golfado pela boca. É quente.
Vou morrer, vou morrer e não é de amor, eu repito delirante, cuspindo sangue nos teus sapatos. Falo de amor pelas madrugadas, bares e livros com toda a maestria de quem nunca amou na vida. Saio sem rumo inventando amores de todas as formas, de todos os becos, só para saber se ainda sou capaz de amar, só para sentir a faca entrar. E amo todos. E não amo ninguém.
Poças de sangue, poços meus, caio de lado numa anestesia de endorfina. Pontada no meio da testa, bem no centro do ser. É tão doce que enjoa. Nenhuma mão fria ou quente que segure a tua, na hora de partir. Puro (des)amor. Vou morrer – e não dói.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

soco no estômago

Nossa história é história mal contada. Daquelas histórias que já começam de pernas para o ar e em meio à bagunça, poeira, traças, caos e móveis usados. Uma dessas histórias sem glamour, baby, cheia de engasgos, batom borrado, rímel escorrido, cabelos desgrenhados, barba há uma semana por fazer. É filme do avesso que casalzinho nenhum dá beijo depois dos créditos, sem era-uma-vez e sem essa de foram-felizes-para-sempre, sem essa: era realidade crua, carnificina estampada no teatro da vida real, realidade cuspida.
E nessas histórias de vida real todos amam errado, e por isso nós também amávamos errado, como quase todo mundo, mas amávamos muito, como só os poucos loucos de pedra podem amar. Na verdade, a loucura maior reside no fato de que já sabíamos que seria assim quando o jogo começou, e mesmo assim jogamos. De corpo e alma, jogamos – mas sem fé. Apaixonados é que fomos à luta. Loucos.
Acho extremamente complicado que se jogue sem fé (mas jogamos) porque a fé é o que dá força – e portanto, jogamos sem força. Pirados. Só cegos em meio ao tiroteio. Éramos fracos, resumindo. Mas jogamos pelo tal amor (e suas complicações) e não que tenha valido a pena, longe disso, éramos apenas loucos amarrados à camisa de força lutando desesperadamente por escapar de um hospício em chamas que só existia no nosso delírio.
Melhor dizendo, não foi jogo, foi pior: foi uma aposta na qual se deixou a vida toda a Deus dará. E deu no que deu: três anos de terapia (de duas a três vezes por semana), noites sem dormir e olhos secos (quase todo dia da mês), coquetéis de valium, rivotril, prozac (brindes diários e em sua homenagem), pensamentos de união entre objetos cortantes e os pulsos (dia sim, dia não...). Fracasso (sempre, sempre). Três socos no estômago, fiquei sem ar. Murro em ponta de faca machuca, mon amour – eis a lição que não aprendi. E que nunca aprendo.
I never learn, baby, então eu digo: te quero. Eu te amo. Eu te amo tanto tanto tanto, chega a doer, baby. Bate, dói, sai um bocado de sangue. É babaquice, carência, teimosia, apego, masoquismo, fetiche, melancolia, hábito, pátio vazio, fantasias inconscientes. Não, cara, é só loucura. Amor é só loucura, Freud não explica – e dói, eu repito.
Bebendo da fonte da insanidade até sentir a ânsia e o enjoo, até perder as noções existenciais entre eu-e-o-outro para que se permita a despersonalização. Afogar o próprio ego até a morte para que se aceite correr o risco da aniquilação ao dizer as-três-palavrinhas-mágicas-soco-no-estômago: EU TE AMO. Não contente, via de regra segue-se com: preciso de você (como preciso de água e ar), cuida de mim (implorando como criança assustada), porque meu coração é seu (concluindo a surra). O soco no estômago para que não se perceba o risco que é entregar o coração na mão de outra pessoa e dizer ''cuida''. E olha que seu coração pode nem ser cuidado direito, então cuidado, cara. Porque pode ser que seu coração vire enfeite de estante, quadro no canto da sala, suporte de lata de lixo, peso de porta ou de papel. Tudo aquilo que não vale meio centavo, e você sabe que coração não suporta (ou não deveria suportar) ser insignificante.
Por isso eu digo, eu cuido de você, se você voltar, se vier me visitar numa tarde de sábado, talvez domingo, talvez de primavera, mas pode ser de inverno também. E que então, sendo minha criancinha assustada, você peça com todo carinho, bem baixinho e ao pé do ouvido, cuida-de-mim.
É nesse momento que eu entro de novo no jogo (sem fé e sem saber jogar), e faço uma dessas apostas altas que não posso pagar com a miséria de coração no peito que me restou, te conto sobre objetos cortantes e pulsos, coquetéis, segredos e mentiras que contei na terapia, e mais, te digo que a realidade sem você é crua e nua e machuca mais que soco no estômago, baby e que você pode seguir as tuas estrelas, a tua estrada que já tem destino certo e traçado, tudo mi-li-me-tri-ca-men-te calculado e feito pra dar certo, pra não correr os riscos que há entre o viver e morrer, você pode sim. Ou pode vir comigo pelo meu caminho enlameado e sem futuro que vai de incerteza em incerteza, conforme a correnteza, mas que tem mãos dadas e uma lua bem bonita que pode até ser sua se você quiser. Vem comigo, sim? Porque num desses desviar de olhos mãos pulsar de coração - natural e infelizmente - a gente se perde, baby e é pra todo o sempre.
Fica comigo, eu disse, que eu te cuido com todo cuidado do mundo de quem cuida de porcelana chinesa, pergaminho hebraico, peça de museu. Fica comigo porque te amo e te preciso como a tua lua precisa do céu pra continuar sendo lua. Meu céu.
Você. Lua. Eu. Meu. Sua. Minha. Céu. Seu - E soco no estômago.

domingo, 23 de janeiro de 2011

os icebergs são saudades, baby

Olha, queria dizer que hoje senti um abismo imenso entre eu e você, e isso me incomodou de um tanto. É um abismo de icebergs pontiagudos, gelados, pesados, tão maiores que eu e você: intransponíveis. O que mais me incomoda, aqui parada, admirando as pontas finas e perigosas dos icebergs é saber que esse gelo todo veio da gente mesmo, do interior do interior também chamado de fundo-da-alma, do inverno de dentro do coração pulsando temperaturas insuportavelmente frias, deixando os dedos com um arroxeado terrível, enchendo de pequenas pedrinhas brancas os nossos pelos e cabelos.
Queria te dizer também que ainda há pouco eu estava me lembrando daqueles tempos sem abismo, quando, jogados no tapete da sala, ouvíamos Cazuza como se não houvesse amanhã e bem naquela parte em que ele canta “você me chora dores de outro amor, se abre, e acaba comigo...”, você me agradecia pelas tantas e tantas vezes em que te ofereci um ombro para que você chorasse o seu amor-para-sempre-perdido, ou sem meias palavras te mandava acordar, boy, that's life – e continua, continua sempre.
Até que numa dessas noites quentes entre uma divagação sem sentido que levava a outra divagação de sentido ainda menor, depois de um copo de conhaque e outro, quando eu já começava a ficar um pouco tonta, talvez um pouco enjoada, eu te perguntei, afinal, o que era amar alguém. Então você me respondeu em CLICHÊ-todo-no-maiúsculo que o amor era uma dor, balbuciou palavras que se escutam na telenovela das oito da noite e se lêem nos romances água-com-açúcar. Nesse momento eu desejei cheia de compaixão que o amor não tivesse te ouvido dizer babaquices, mas, caso tivesse, pedi que te perdoasse, pois você sofria como quem crucificou o santo-filho-de-deus e eu sentia dores de cruz pelo teu sofrimento: você não sabia o que dizia.
Antes que eu dissesse palavras duras como desencana-baby-você-está-anos-luz-de-saber-o-que-é-amor ou simplesmente te desse aquele silêncio de quem deixa o outro se perder no próprio monólogo que você tanto detestava, você continuou as suas divagações sobre o que você então concebia enquanto amar-a-alguém com: o amor é assustador, menina. Dessa parte eu gostei, despertou algo como uma dúvida latente, uma inquietação e foi nessa falta de paz que eu quis entrar, quis discordar. Te disse que se deve achar o amor piegas bobo fútil inútil tolo banal perecível sentimentalóide sem sentido, qualquer coisa, só não assustador. E você aceitou a briga de verdades-pessoais e cheio de certeza argumentou que tem coisas que não deveriam assustar, mas assustam porque pegam de surpresa a vida da gente e chacoalham e despedaçam tudo como num liquidificador em máxima potência. Eu entendi. Foi aí que eu concordei.
Como de praxe na forma de relação que estabelecemos ao longo desses muitos dias de convivência, em contrato social assinado sem nenhuma letra, mas não menos irrevogável, uma pergunta feita a um, pelo outro, era motivo mais que suficiente para que a pergunta adquirisse formas de bumerangue, e que, portanto, voltasse ao ponto do qual havia partido, nesse caso, o ponto eu estático ali jogado no tapete da sala, olhando para o teto enquanto ouvia você dizer sem parar esse monte de besteiras sob a meia luz da voz rouca de Cazuza.
Eu tive medo de esbarrar em todos aqueles clichês espalhados pelo tapete, pairando no ar, rodando na minha mente. Travei. Três minutos olhando para o teto, nenhuma palavra. Respirei fundo. Sem jeito eu disse que, meu caro, não posso responder, não sei o que é o amor. Não faço a menor ideia, a menor. Eu nunca soube, pois eu desconfio, na verdade, que eu nunca tenha amado ninguém.
Você, sempre tão teimoso, parou, me olhou com certo desprezo nos olhos e disse tal qual criança obstinada que não acreditava, e que, como aprendemos com o pequeno príncipe dos cabelos cor de trigo, que lemos juntos e jogados nesse mesmo tapete, jamais se deve deixar de lado uma pergunta. OK, você usou o melhor argumento possível, nenhuma experiência em advocacia faria melhor. Então parei de ponderar e deixei o fluxo de consciência seguir livre. Comecei com meu clichê (sim, clichê, porque depois me dei conta, somos tão piegas, não é, baby?), disse bem seriamente, quase forçando a voz, falando mais grosso que de costume, que no amor não há que se pensar, só que se sentir - e se deixar engolir pelo turbilhão de emoções. O amor era um risco, então. Continuei tropeçando nas palavras: olha, acredito que amor seja mais ou menos quando você acorda pensando naquela pessoa e ela se mistura ao seu pão-com-manteiga-e-café e nas notícias do jornal você é capaz de ler o nome dela nas entrelinhas. Aí você vai trabalhar e no meio do caos da cidade grande, você consegue ouvir os passarinhos e nem é verão ainda, entende? Você passa o resto do dia inteiro vendo essa pessoa invadir seus pensamentos todos, o que te distrai dos problemas e das obrigações, você faz tudo errado, e é aí que seu chefe te dá uma bronca memorável, mas você nem liga tanto para isso, afinal, você tem aquela pessoa, que importa o mau humor do chefe, não é? Depois, é o pensar nessa pessoa que faz com que você mantenha a calma no trânsito infernal de uma São Paulo enlouquecida em plenas seis horas da tarde. E você pensa nela enquanto toma banho ou vê TV, e depois vai dormir pensando nela, e pensa nela até pegar no sono. E depois sonha. E no sonho vocês fazem um filme, comem doce, se beijam de mil formas diferentes, começam a cavalo no Texas e terminam de barco numa lagoa que nem existe, e no final pode ser até que façam amor, numa cama, numa rede, no tapete da sala. Pausa. Olhos no teto. Olhos nos olhos. Escute, sinceramente, você morreria por ela. É isso! É isso, apaga todo o resto: amar é morrer por. Porque não há nada mais importante que a própria vida, exceto aquela pessoa. E então você aceita morrer por ela, seja na guilhotina da monarquia inglesa, na câmara de gás dos nazistas, no pelotão de fuzilamento, na cadeira elétrica, na injeção letal, não importa, você morre sim e sem pestanejar (e morreria suas sete vidas se fosse um gato).
Você riu. Disse qualquer coisa como você-pensa-coisas-tão-malucas-menina-chega-a-ser-engraçado e me deu um daqueles beijos estalados na ponta do nariz.
Não tenho os ácaros daquele tapete aqui, aqueles que fazem a minha rinite entrar em surto de espirros. Só tenho tantas lembranças, meu bem, todas guardadas em pequenas caixas de veludo vermelho sangue em cofre de coração partido, sabe? Queria te ligar qualquer hora dessas e dizer ei, cara, vamos nos jogar naquele tapete empoeirado como dois gatos que só tem mais uma vida para viver?
É que agora já faz tanto tempo, mais de um ano. As dores da saudade, depois de muito latejarem, agora, talvez, nem doam mais. Estou um tanto calejada de sentir saudades suas, uma fome que nunca passa, que nada sacia, mas que eu não mendigo mais migalhas de pão tentando fazer parar o roncar do estômago, porque o roncar já virou música. Não tenho mais nenhuma lágrima escorrendo das feridas nem tampouco a antiga voracidade de devorar o mundo. Mas sabe que, tão engraçado, agora, olhando tudo o que ficou para trás, ter um coração ritmado, batendo em paz. O que você tem feito da sua vida, baby?

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Sobre ciladas, mendigos, sarjeta e superbonder

Durante algum tempo eu achei admirável essa história de amor. Sabe? Desses amores de cinema aos domingos, mãos dadas, vestido florido, ansiedades e flores nos olhos. Eu até acreditei que fossem verdades essas conversas que ouvi no rádio. Foi então que aos poucos e sorrateiramente, você sabe, isso quer dizer que foi sem que eu me desse conta, fui me tornando, também, uma descrente. Tudo bem, talvez não tenha sido tão sorrateiramente assim, a gente não dorme crente e acorda cético, não dorme apaixonado e acorda indiferente: não, não, a gente vai se unindo às ciladas da vida, do mundo, dos outros, até se tornar a própria cilada. Eu, cilada. Não se mete comigo, meu caro, porque parafraseando o Drummond, quando eu nasci um anjo torto, desses que vive no caos, veio e me falou: e serás cilada, minha filha, ci-la-da.
Andei pensando nessas confusões de amor. Nesses extremos crimes passionais e pessoas para sempre perdidas, nesses corações para sempre partidos sem superbonder, nesses amigos para sempre sumidos um em cada canto, sozinhos-sozinhos enlouquecendo à caça de outros amigos, na tal da alteridade e amor ao próximo para sempre esquecidos no bar da esquina, no mendigo bêbado e jogado na sarjeta que... tem mendigos aqui nessa cidade, meu amigo? Não ouvi resposta.
Rolei de um lado para o outro da cama. Foi terrível passar uma noite inteira pensando em amor. Terrível, terrível. Amor não foi feito para ficar pensando sobre, porque se você pensa em cima do amor... já era, meu amigo, perde todo o irracional a ele inerente, deturpa a ideia, estupra a essência e os resultados são desastrosos: você se torna, também, uma cilada. Uma cilada de descrença. Cilada para o coração do outro, compreende? Para o outro que ainda não saiu por aí com uma metralhadora de racionalizações mirando nos sentimentos humanos, que ainda mantem os sonhos guardados para que nenhuma pessoa cilada, como eu e você, destrua tudo e o pobre acabe cilada como nós. Cresce o número de pessoas-cilada, deu no jornal (ou na tv, não lembro agora).
Como eu ia dizendo, eu nem sempre fui cilada, aconteceu depois, embora o anjo já tivesse previsto. Não há o menor sentido em revelar aqui, onde, como e quando eu adentrei ao grupo dos cilada. Eu também não sei. Deve ter sido depois dos amigos que se foram, dos amores que morreram, dos mendigos que eu não vi, das grandes coisas que não deveriam ir, mas vão – e não voltam mais. Para a nossa nostalgia de quase todo santo dia, restam só as lembranças já meio borradas de tempo passado, amareladas feito fotografias velhas num álbum que se perdeu.
E eu só fiquei aqui, parada. Assistindo as coisas acontecerem comendo pipoca sem sal. Porque eu tinha tanto tanto medo de não encontrar, tinha tanta tanta fome de um não sei quê, tanto tanto medo de me perder, porque nós tínhamos tanto tanto medo de cair, ralar o joelho e chorar, porque a mãe advertiu que ''lá fora'' tinha tanta gente cilada, mas eu não ouvi apesar do medo, e da fome, e do joelho ralado – e foi aí que eu chorei. Ai, doeu por noites e noites meu coração quebrado sem superbonder aqui nesse quarto onde eu sozinha-sozinha inutilmente tentava encontrar amigos no escuro.
Porque sim porque não porque talvez porque não sei porque tem tanta gente no mundo tanta gente cilada nos arrancando pedaços da carne com as unhas e as minhas unhas não eram grandes e me arranhavam e me arranharam e me arrancaram partes para saciar fomes insaciáveis que não eram de carne ou sangue e agora eu vejo as minhas grandes unhas postiças e às vezes eu me machuco com elas porque meu Deus depois de tanto me debater sobre o mundo e dizer que não, não, que eu não queria desacreditar, que eu precisava continuar acreditando nessa sujeira toda que se chama eu o outro e todos nós sem exceções, foi que o mundo me mostrou os tantos mendigos andando pelas ruas de vestidinhos floridos, de tênis e meia, de camisa e gravata, de calça jeans, não mais jogados nas sarjetas de pedra e concreto, mas nessas sarjetas que a gente esconde dentro da cabeça e mascara com a neurose e o sorriso e a maquiagem e uma boa esteticista.
E com uma metade do brinquedo quebrado em cada mão a gente só sente o nó começar a tomar conta da garganta, inspira/expira, engole seco, encontra um ponto fixo e olha firme, diz que tanto faz, que afinal não era tão legal assim, que não tinha importância e que o natal está sempre aí, de qualquer forma e que na pior das hipóteses ganha-se um brinquedo igual – ou até melhor, quem é que sabe?
Estou inexoravelmente envolvida nesse lixo todo, nessa confusão, me equilibrando para não cair com a cara no charco, você me compreende? Parada de novo, em meio ao trânsito engarrafado de mendigos brancos, negros, altos, baixos, loiros com ou sem lente de contato, com ou sem as roupas da moda, com ou sem maletas e bolsas e aparelhos celulares e cigarros e drogas nas mãos, foi que eu quis sentar na sarjeta. Sentei e vi mais claro, faz um céu azul pra esses mendigos cinza. A surpresa ao ver mais de perto foi perceber que a sarjeta já estava em mim. E fazia um tempo. A sarjeta foi ganhando valor e influência, fui me amoldando à cara da sarjeta.
E tudo o que você faz, pensa, age, sente, representa expõe mais e mais e ao máximo nível toda a tua miséria humana decadência lixo patifaria, esse teu grande lado sujo, as tuas muitas caras de maquiagem escorrida quase até o queixo da máscara, esse buraco negro e cheio de vermes e bichos rastejantes que você se tornou ou que talvez você sempre foi, embora as pessoas não enxergassem a tua pobreza de mendigo por misericórdia, amor, compaixão, cristianismo, pura insensatez, qualquer coisa do gênero. E porque eu também sou transbordante em misericórdia amor compaixão cristianismo com validade vencida e insensatez, pura e muita insensatez e mesmo assim não te suportei vomitei cuspi rejeitei teimei em não aceitar as tuas artimanhas, armadilhas, inverdades, ci-la-das e empurrei o prato com toda a força da minha fobia a vermes, bichos rastejantes e almas pela metade.
Acabou o superbonder do mundo, meu amigo. Estou na sarjeta e sem rumo e não quero nenhum mendigo que me dê a mão e me mostre caminhos. Não quero essas unhas grandes e famintas me ferindo até o osso. Me encrespei numa casca de orgulho que se cutucar sangra: agora sou cilada.

grita, Caio F. !

Escuta aqui, cara, tua dor não me importa. Estou cagando montes pras tuas memórias, pras tuas culpas, pras tuas saudades. As pessoas estão enlouquecendo, sendo presas, indo para o exílio, morrendo de overdose e você fica aí pelos cantos choramingando o seu amor perdido. Foda-se o seu amor perdido. Foda-se esse rei-ego absoluto. Foda-se a sua dor pessoal, esse seu ovo mesquinho e fechado.

Caio Fernando Abreu (Caio F. só pra quem é íntimo) - Ovelhas negras

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

qualquer banco, qualquer praça

(... ou até sapatos sujos)


Quinze minutos de atraso – algumas manias não se perdem nunca – pensou. Sentado no banco daquela praça, com os sapatos sujos, as mãos geladas, olhos no relógio, mãos inquietas, mãos no bolso para pegar um daqueles cigarros baratos que acabariam por matá-lo. Acendeu. Tragou com força de pulmões sedentos. Fumaça subiu como um suspiro.
Ela chegou – atrasada e radiante como sempre – depois de tanto tempo ainda tinha a mesma mania de iluminar. De fato, ainda mantinha algo de encantador, de inocente, de princesa disney que impulsivamente come a maçã e quando vê já é tarde demais e precisa de um príncipe para salvá-la, mas não aquela princesa, aquela era diferente, eu vi - vivi, quando um belo dia, depois de acordar com o corpo enrolado ao meu, sem rodeios, me disse: olha, cara, paramos por aqui. Segue a tua vida, esse nosso re-la-ci-o-na-men-to (e fez aspas com os dedos) anda muito hardcore pro meu gosto musical. Te gosto, mas... compreende?
Águas passadas, quem se importa? Nada como um dia após o outro e mundo girando. E agora ela estava ali, bem ali, e tossia pela fumaça do meu cigarro vagabundo que depois apaguei pisando com meu sapato sujo.
Ela sentou no banco. Perto. Não, não, um pouco perto – o suficiente pra sentir aquele perfume doce de sempre e ter uma leve, discreta vertigem. Passada a tontura, iniciou-se o teatro: oi-tudo-bem-como-vai-você-quais-as-novidades-da-sua-vida, como-você-está-mudado ou ainda você-ainda-fuma-tanto-assim.
Quis interrompê-la e dizer olha sim, baby, minha vida continua a mesma – mas sem você – o que não me faz a menor diferença. E olha, não, não estou mudado, talvez eu tenha amadurecido um pouco, sem toda essa sua futilidade e labilidade pra influenciar, e sim, continuo auto destrutivo com meus cigarros-suicídio, meu amor, como deve ser, ainda durmo três dias seguidos e ainda tenho noites de insônia, vivo de excesso em excesso, na corda bamba do 8 ou 80, porque não me interessa o que você acha. Mas, tudo o quis dizer foi contido, e o que foi falado foi um quase sussurro de estou-bem-obrigado.
Por um momento, não sabia, afinal, que diabos fazia ali, sentado naquele banco de praça com aquela princesa disney que o fizera o sapo-vilão-lobo-mau-ou-bobo-da-corte de sua particular historinha infantil. Então era isso que ela queria? Não sou seu personagem, baby, me deixa fora dos teus delírios.
Ela chegou mais perto – ele se encolheu – ela encostou no ombro dele – ele, estátua - Então era isso, bitch. Pensou em se desvencilhar dela, mas por qualquer coisa do tipo delicadeza, cavalheirismo, medo ou formação reativa deixou que ela ficasse ali, com aquele perfume entorpecente.
Então ela falou em saudades. Falou algo como sinto-sua-falta e quis ressuscitar as recordações que a que duras penas jaziam em paz, amém.
A vertigem do perfume melado o desnorteou ainda mais. Talvez pela proximidade, talvez só pela companhia daquela mulher, talvez pelos afetos loucos gritando dele, não importa, fato é que estava quase bêbado de qualquer coisa que ainda não sabia dar nome, e escutou as palavras saindo, descontroladas, procurando ouvidos aos quais ferir, olha, não abusa, menina, não me venha com esses lamentos.
Verdade seja dita, meu bem: nos transformamos um ao outro, gradativamente, dias após dias, tédios, insultos, tapas na cara e simbólicos venenos na bebida, em tudo aquilo que mais odiávamos no mundo, aquilo tudo que desprezávamos e pisávamos sem rastro de piedade.
As palavras pesaram. Ela se espantou, desencostou daquele ombro magro, olhou com olhos meio assustados para aqueles olhos meio moribundos – mas invasivos. Necessárias seriam umas muitas doses de vodca e conhaque, mais tarde. Um minuto de silêncio para o fim do amor – e um insight para a libertação – te odeio, ele disse, te odeio muito. Isso é porre de ódio, então. Não faço parte do seu jogo, não gosto do seu tipo manipulador e o seu perfume é péssimo. Não conte comigo nos teus contos de fadas, menina - e como quem repete o drama, continuou – segue a tua vida, na verdade, você sempre foi música-clássica-com-pop piegas demais pro meu hardcore.
E agora ela já poderia pegar sua Victor Hugo falsificada, sair enxugando as lágrimas e ir sofrer calada por ser aquela princesinha que o príncipe não salva do calabouço, nem do dragão, nem bruxa má. E ele poderia só ficar ali, sentado por algum tempo, acender mais um cigarro, daqueles, de gosto de morte em parcelas, e procurar algum caminho torto o suficiente que o levasse pra longe de toda aquela parafernália cor-de-rosa de guria de prédio. Só um caminho torto e sujo, para sapatos sujos.